Daniel & Pr. Wagner - DIVAGAÇÕES
PÓS-TUDO
Não consigo dormir.
Dormi durante a tarde, à custa de
remédios, enquanto mamãe era homenageada em velório e enterro. Uma decisão do
meu irmão, querendo preservar-me de mais sofrimento, uma vez que passara a
madrugada e o princípio da manhã junto ao caixão, e não suportava mais tanta
dor, ausência e solidão.
O que dizer? O que falar? É como se
o mundo não tivesse mais cores, os sons não tivessem mais ruídos audíveis, como
se o ar não fosse mais suficiente e o tempo não significasse mais nada. Viver,
morrer, nada mais faz sentido.
Quanta história esses 16 dias de
UTC do Hospital São Joaquim da Beneficência Portuguesa, reservou para nós!
Coisas que certamente esqueceremos, com o passar dos anos, mas que aconteceram,
e isso não se pode negar.
A internação de mamãe. Na cama,
quase afogando-se, enquanto os bombeiros chegavam para removê-la, ela disse à
Milu: "Cuida bem do Wagner e cuida da casa". Depois, ao chegarmos ao hospital, e
removê-la para a tomografia, após sair, suas últimas palavras à minha prima
Leila: "Eu te amo", e já não disse mais nada. A hora em que meu irmão Daniel
chegou do Rio de Janeiro, junto com seu sócio Renato, e o desespero de ver minha
mãe à beira da morte.
Os dias se seguiram, e o mundo
praticamente parou em nossas mentes. Não vimos mais jornais, noticiários, não
sabemos mais o que aconteceu no planeta. O nosso planeta era mamãe, e ela estava
sofrendo. Vê-la entubada, pela primeira vez, foi a morte para nós. Meu Deus, ela
dormia "tranqüila", se é que se pode chamar esse tipo de sono de tranqüilidade.
Visitas ao meio-dia e às dezoito horas. Cada médico plantonista com um jeito
diferente de falar: uns, dando muita esperança, dizendo que houve melhoras nos
rins, nos índices de glicemia, no sangue, nos órgãos, e que diminuiram a
medicação e a respiração mecânica. No outro plantão, tudo caía por terra, porque
agora ela estava cada vez pior. E na manhã seguinte, num eterno círculo vicioso,
melhoras e pioras se sucediam.
Lembro-me quando, junto de meu
irmão, vimos mamãe começando a acordar. Seus olhos se abriram. Mas eram olhos
diferentes, grossos, com a parte branca engrossada. Seu rosto ficou vermelho e
ela tentava tirar os canos. Acalmamo-la, mas nosso desejo era ajudá-la,
arrancando tudo. Seríamos presos, se o fizéssemos. Alguns parentes também viram
minha mãe assim, chamando (imaginaram que fosse) "Jovê", "Nina", a sua irmã mais
velha e mais doente, que sofre com enfermidades longas.
Lembro-me do dia em que uma frente
fria passou aqui por São Paulo. Aliás, o tempo aqui na capital está tão triste,
o sol não se firma, também não há estabilidade, parece que a Natureza chora
mamãe. Nossa mente faz associações que lhe confortem e consolem, não é mesmo?
Bem, naquela tarde, após vê-la, meu irmão iria embora. Então eu disse a ele que
passaria a madrugada no hospital. Ele perguntou-me: "você acha que ela irá
morrer hoje?" Eu disse: "Não sei, mas tenho que ficar por aqui, disso eu sei". E
fiquei. Primeiramente meus primos Edemir e Eneida, vieram ver-nos e conversar.
Ficamos até altas horas. Depois, sozinho, recebi a visita do amigo e irmão
Serginho, vice-presidente da Boas Novas. Ah, ficamos a conversar longamente, e a
orar também. Mas às 11 horas eu iria usar minha carteirinha para ver minha mãe.
Contudo, as enfermeiras estavam em troca de plantão, e eu vi minha mãe bem
rápido, para não atrapalhar. Perguntei se poderia vê-la às 3 da madrugada e
saber notícias. A enfermeira explicou-me que vê-la ela autorizaria, mas passar
informações, só a médica, pois seria anti-ético da parte dela. Ah, se todos os
pastores também aprendessem a respeitar a ética cristã e
ministerial!
ÀS 3 da manhã estávamos lá,
Serginho e eu. Uma enfermeira veio à sala de espera, dizendo: "o senhor é o
filho da Dona Elzira, certo? A enfermeira-chefe está lhe chamando". O coração já
saltou de medo e preocupação. Teria minha mãe falecido? Estaria já a chamar a
família? Corri para a porta de entrada, lavei as mãos e vesti o avental. A
enfermeira, do corredor, disse: "Venha, ela está a chamá-lo". Corri. Então
mandaram-me entrar numa sala, onde estavam 5 enfermeiras. A chefe falou:
"Bem,... nós estamos morrendo de vergonha... mas todo mundo aqui já sabe ....
que a Dona Elzira tem um filho pastor ... e nós queríamos que o senhor orasse
pelos doentes aqui do Choque. Eles precisam, e nós também..." Aliviado, mas
excitado pela surpresa, disse: "Mas como assim? Ir de leito em leito?" Elas
disseram "Nâo, porque alguns não aceitariam, mas podemos orar aqui mesmo".
Fiquei agradecido ao Senhor, porque
até lá, no hospital, à beira da morte, mamãe estava a dar o seu testemunho,
sendo reconhecida como uma mulher abençoada, cujo filho deveria ser alguém de
bem também. Aliás, um dos comentários ali feitos é que nós dois, Daniel e eu,
éramos os visitantes mais constantes, contínuos e fiéis de uma paciente. Orei
emocionadamente por cada doente, cada enfermeira, cada médico, cada funcionário.
E orei também por minha mãe. Enquanto orava, Deus tocava em meu coração para que
eu repartisse a Sua Palavra com eles. "Em quantos funcionários vocês são?" Elas
disseram: "60 aqui na UTC". "Então eu hei de conseguir 70 Novos Testamentos, ou
70 bíblias, para lhes dar de presente, até um pouco antes do Natal". Ah, elas
sorriram e fizeram festa, como quando recebemos a notícia alegre de que alguém
está melhor de saúde. "Mesmo que minha mãe ainda estiver aqui, ou se tiver saído
para a vida, ou ido aos braços do Pai, eu voltarei". "O senhor poderia orar de
vez em quando aqui?" "Mas é claro que sim! Contem comigo!" E ali estava um
ministério novo, criado por Deus, através do sofrimento de mamãe! Ainda não
tenho os novos testamentos, ou as bíblias inteiras, mas creio que o Senhor as
dará, para que eu as encaminhe para eles, até antes do
Natal.
Penúltimo dia. O médico nos disse
que minha mãe estava além dos 70% aceitáveis de gravidade, e que agora a
infecção hospitalar havia coberto o seu corpo. Disse-nos que as úlceras estavam
abertas e jorrando sangue, e que não havia medicamento que desse jeito à sua
pressão. Falou-nos que tentariam alguma coisa, mas que, infelizmente, o mais
natural, seria o caso "evoluir para o óbito". Evoluir??? Meu Deus! Saímos de lá
abatidos, acabados. Lembro-me, no corredor, quando tentamos ir à capela orar, e
encontramo-la fechada..., ter confortado o meu irmãozinho Daniel, quando eu
mesmo é que precisava de conforto! Mas eu sou o mais velho, e tenho a obrigação
de ser forte, e o Espírito Santo supriu-me de conforto o coração.
Aleluia!
Quem dormiu à noite? E na
madrugada? E na manhã? Cada toque do celular ou do telefone, era uma punhalada
em nosso peito, que aguardava com expectativa fúnebre a notícia funesta e fatal
do estado de mamãe.
Por fim, o meu irmão iria visitá-la
à tarde. Quis que eu ficasse. Mas eu tinha certeza de que deveria ir, uma vez
que poderia ser a última despedida, ou então, que algum milagre
ocorresse.
Faltava meia hora para as 18, e eu
senti no coração que deveria fazer uso, mais uma vez, da minha carteirinha. E
fiz. Ao entrar, vi-a já com a boca arroxeando, sua cor empalidecendo, poucos
medicamentos pendurados, e o seu coração em compasso lerdo, lerdo para o que
víamos nos outros dias. E ouvi em meu coração A VOZ, que dizia: "Ore agora". Ah,
essa voz! Foi essa a voz que me fez despedir o irmão Antonio, esposo da irmã
Isabel, que morreu em meus braços! Foi essa a voz que me fez informar aos
vice-presidentes que, logo após ir aos Estados Unidos, eles passariam por um
funeral. Essa Voz, do Espírito Santo, me iluminou a orar. E orei, motivado por
Ele: "Senhor, tua serva já cumpriu a sua missão, de forma brilhante e
maravilhosa! Foi excelente esposa, primorosa cristã e a mãe mais maravilhosa do
mundo! Não deixe-a sofrer mais! Seu corpo não suporta tanta luta! Dá-lhe o
descanso necessário! Em nome de Jesus. Amém. Mamãe: muito obrigado por ser quem
a senhora é. Daniel e eu a amamos muito! Agora, mamãe, siga em frente, descanse,
vá para os braços de Jesus! Logo, logo, estaremos juntos, para sempre!" Orei
assim, enquanto sentia, em sua testa, o último calor de vida. Nesse momento, a
máquina do coração, indicava 55 por minuto, e caiu para 50, 45, e a enfermeira
disse: "Tem mais alguém aí para entrar? Diga para entrar agora". Corri e chamei
meu irmão Daniel, que entrou e pôde despedir-se dela. Ao saírmos, meu tio Carlos
Bonfante e minha prima Cristina também entraram, e foi na visita da Cristina,
que mamãe expirou. O Daniel falou: "ela esperou a sua bênção, mano". Seja Deus
engrandecido.
Então o forte fez-se fraco, e
desandou. Caí em profunda dor, sentimento, tristeza, amargura, desespero. Fiquei
em casa, com tias e parentes, e irmãos da Boas Novas, que vieram fazer-me
companhia. Obrigaram-me a dormir um pouco e a comer algo (dois dias sem dormir,
e quase isso sem comer). Quem conseguia dormir? Às três estava eu, Izamara e
Domingas aqui, e o povo havia descido para a igreja. Corri para lá também.
O Daniel quis segurar-me, mas quê!
Tive que ficar juntinho do corpo dela. Ah, estava ela vestida com seu vestidinho
mais usual e querido. Fizeram-lhe uma cirurgia pós-morte, para retirada de
vísceras, pois a barriga estava explodindo e o sangue jorrava por todo canto.
Quantas bolsas de sangue e litros de remédio ela não tomou em 16 dias, e os rins
não deram conta? Encheram-na de pó-de-serra e de formol. Cheirava remédio e
desinfetante. E os cuidadores, iam fazendo o enchimento com galhos de flores e
folhas. Meu Deus, meu Deus, meu Deus! Quando foi que imaginei ver minha mãe
assim?
Enfeitaram-na com crisântemos
brancos, com um véu muito fino, grampeado nas beiradas. Cada ruído do
grampeador, era uma martelada em nossas carnes e em nossas mentes. Meu Deus!
Depois, com ela preparada, estávamos lá, ombro a ombro, Daniel e eu, os filhos
de Elzira! Agora éramos só nós dois, e a Milú, e mais ninguém! Estávamos sem
aquela que nos gerara! Ela partira com Jesus. E, fisicamente, estava morta. E,
espiritualmente, estava longe, muito longe, na eternidade, no Paraíso, e nós
ficamos!
Vir e ir. Voltei, trazido pelos
irmãos, e comi alguma coisa, retornando para o velório. As pessoas estavam a
chegar, mas eu não consegui conter-me, ao ver suas irmãs chegarem, e verem o
rosto da irmã querida ali, morto, no caixão. Suas palavras, suas lágrimas, sua
dor, foram insuportáveis. O meu coração começou a ter arritmia forte, e senti
que algo estava a acontecer. Conhecedor de minhas limitações, o meu irmão
ordenou que eu voltasse, trazendo-me para casa. E deram-me calmantes, com os
quais dormi até bem depois das 17 horas, hora do sepultamento lá longe, em Embu
das Artes. Fiquei triste, por não ter estado junto. Mas tudo o que eu tinha que
fazer pela minha mamãe, eu fiz em vida, e isto eu sei que ela soube, e Deus
também sabe. Meu irmão, saudável, esteve até o final, e falou-me da multidão de
gente, entre amigos, irmãos em Cristo, empresários, executivos, pastores (mais
de 30), gente de nosso relacionamento e amigos da internet, todos despedindo-se
da "mãezona" Houve a necessidade de alugar-se um carro à parte e a mais, por
causa de tantas e tantas homenagens de coroas de flores. Mamãe, nós te
amamos!
E agora, primeira noite definitiva,
sem a expectativa de alguma ligação do hospital (até desligamos os telefones,
para descansar), sem a esperança de vê-la sentar-se no seu "trono" da sala, sem
aguardá-la para comprar as frutas que gostava, sem arrumar sua cama
confortavelmente, para que dormisse, sem ligar o rádio na REDE MELODIA, sua
rádio querida do coração, sem dar corda no seu relógio despertador quebrado, que
ela mantinha funcionando, mesmo sabendo que não tinha mais ponteiros (e quando
ameacei jogá-lo, ela disse: deixa ele funcionar, tadinho), cá estou, pensando
alto, com os dedos, no teclado do computador, sabendo que o e-mail já está a
terminar e, que depois, ao desligar a máquina, só sobrará um vazio, um vazio do
tamanho de minha mamãe! Que saudades da senhora, mamãe Elzira! Como irei
conviver com sua ausência?
Pedi licença da igreja e estou
pedindo licença aos amigos e irmãos também. Meu irmão e eu nos ausentaremos por
uns dias. Não sei para onde vou, o que vou fazer, mas sei que não posso ficar
aqui. Tudo me lembra a mamãe, e as emoções estão frescas, à flor da pele. A
Milú, coitada, está arrasada, porque foi ela quem cuidou de minha mãe como
perfeita enfermeira, e convive conosco desde 1982. Ela está a sofrer
barbaridades. A Izamara, secretária da igreja, esteve conosco, está conosco e
não arredou o pé, sendo de uma gentileza e prestatividade à toda prova, e
certamente o Senhor a recompensará muito pelo que fez, e nós
também.
Não sei quantas centenas de
telefonemas que Daniel e eu recebemos, mas certamente ultrapassaram os 500. Os
e-mails que continuam a chegar, passaram dos 1000. E eu agradeço por todos eles.
Os responderei a todos, mas, com o tempo, quando voltar, porque, agora, não
tenho cabeça para nada. Sei que vou me dedicar a Deus em dobro, porque esse é o
caminho e também essa era a vontade de minha mãe. Quero viajar para pregar o
evangelho aonde Deus me chamar, e aguardarei o que Deus terá à minha frente.
Quero casar-me e ter os meus filhos, e lhes dizer o quanto fui abençoado, com a
mãe que Deus me deu. E quero testemunhar a todos: o Senhor é fiel, o Senhor é
sábio, o Senhor é misericordioso. Hoje eu não sinto ter sido atendido em minha
oração, mas eu sei que fui, e o que mais importa é o que eu sei, mediante a
Bíblia, do que o que eu sinto, em meu coração; pois a bíblia é eterna, e as
minhas emoções são passageiras, e não sou guiado pelas emoções, mas pela Palavra
de Deus.
Continuem a escrever. Estou
recebendo as mensagens, vou guardá-las com amor e carinho, meu irmão também, e
vou respondê-las. Só esperem uma semana e pouco, para que voltemos a reconstruir
a vida.
Um abraço.
Wagner Antonio de
Araújo