terça-feira, 12 de novembro de 2019

páginas soltas - 820 - SÓ JOSÉ

JOSÉ
 
820
 
Era idoso. Mas sempre alinhado. Aposentara-se há anos. Há quinze era viúvo. Suas duas filhas moravam próximas, casaram-se e eram mães também. Ele vivia sozinho. "Sozinho não; com Deus", gostava de dizer.
 
Era muito crente. Costumava ler a bíblia na escrivaninha da sala. Tinha um abajur que ganhara nas bodas de prata e com ele iluminava as páginas sagradas. Lia 20, 30, 50 minutos à noite e outros tantos pela manhã. Depois, ao pé da escrivaninha, colocava um travesseiro e, com cuidado, ajoelhava-se. Orava ao Senhor. Às vezes chorava, outras sonhava. Em todas, porém, Deus estava presente.
 
Certo dia ele não saiu até a padaria para comprar o pãozinho diário. Sua filha, que também ali passava, ouviu do balconista a preocupação pela ausência. Ela, preocupada, saiu da padaria e passou na casa do papai. A porta estava trancada. Como tinha uma chave consigo, abriu a porta. Foi ao quarto. Papai dormia.
 
- Papai, o que há?
 
Ele, acordando, deu um sorriso.
 
- Olá, filha amada. Vou partir!
 
- Como, papai? Que história é essa?
 
- O Senhor vai levar-me, querida. Vou aos braços de Deus!
 
A filha saiu correndo para o quintal, ligou para a irmã e chamou a ambulância. Seu pai, lá de dentro, pediu:
 
- Filha, eu lhe peço: não me tire daqui. Apenas chame a sua irmã.
 
Ela, agora desesperada, aguarda a irmã, que chega afoita.
 
- O que foi, mana?
 
- Ai, meu Deus, papai não está falando coisa com coisa! Ele disse que vai partir hoje! Venha ver!
 
Quando chegaram no quarto, seu pai olhava para cima e sorria. Logo viu as filhas aos pés da cama e disse:
 
- Venham cá, meninas! Eu já disse que amo vocês?
 
- Sim, papai! Mas vamos ao hospital, por favor.
 
- Não, minhas filhas. Eu estou bem. Aliás, estou muito bem. Peguem em minhas mãos.
 
Elas assim o fizeram, em lágrimas. As mãos de papai estavam frias, mas sem desespero ou tremores. Ele, olhando para ambas com um brilho diferente nos olhos, pediu um beijo de cada uma delas. Elas o deram e o abraçaram em prantos.
 
- Calma, minhas queridas. Calma! Papai vai para casa! Eu não disse a vocês que o céu é o nosso lar? Pois então, não há porque ficarem tristes!
 
Em seguida apertou as mãos das meninas e disse, olhando para o céu:
 
- Senhor Deus, Pai celestial, tenho ao meu lado as filhas que me deste. Obrigado por tanta riqueza! Obrigado pela vida, pelo amor e pela família! Agora estou pronto para partir. Obrigado pelo perdão dos meus pecados por Cristo, o meu Salvador! Senhor, cuida de minhas meninas. Cuida de seus maridos e filhos. Cuida da nossa igreja. Aleluia! Maranata!...
 
Fechou os olhos e partiu.
 
Sim. Agora eram as filhas que oravam em pranto copioso e dolorido, mas gratas pelo pai magnífico que ali descansava. Um homem que viveu com Deus e morreu com Deus. Um homem de quem tinham orgulho. Um homem de valor.
 
O seu nome?
 
José. Só José.
 
Wagner Antonio de Araújo

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

memórias literárias - 1477 - CHORA, Ó RAQUEL...

  CHORA, Ó RAQUEL...   1477   Quando o Senhor Jesus Cristo fez-Se homem, nascendo do ventre de Maria, Herodes o Grande desejou matá-Lo...