A VELHA
AGENDA
DE
TELEFONES
430
Paulo arrumava a garagem.
Ele guardava tudo o que era usado e supérfluo ali. Um autêntico depósito de
tralhas, móveis velhos, papéis amarelados, fotos antigas, máquinas quebradas.
Era preciso arrumar aquilo tudo.
Ao remexer numa velha caixa
de bombons, cheia de papéis, encontrou uma agenda velha. Ali estavam nomes e
telefones de pessoas queridas, velhos amigos, colegas de trabalho e de escola.
Paulo sentou-se e manuseou
o velho caderno. Quanta recordação!
"Ah, o Sérgio. Grande
colega! Trabalhávamos juntos na preparação de dados dos documentos do banco.
Como era cômico! Enquanto somava, contava piadas. Eram tão ridículas e sem
graça, que ficávamos perplexos ao ouvi-lo. Só que ele mesmo ria e com tanto
gosto, que não aguentávamos e ríamos também! Ah, Sérgio! Por onde
anda?"
"A Ritinha! Que menina!
Cada dia uma história de atraso. Um dia era o ônibus; no outro o trem; e no
outro um velório. Não sei nem quantas vezes ela foi ao velório da tia. A chefe
sabia que era mentira, mas relevava, pois era boa funcionária. Mas era
fofoqueira. Nossa, como gostava de contar sobre a vida alheia! Saiu da firma pra
casar. Soube que teve um filho. Como será que está?"
"Seu Pacheco! Como me
esquecer? Já tinha seus setenta anos, vinha à pé para a firma. Tomava conta do
quadro de chaves do prédio. Tinha uma barriga! Lembro-me quando entalou na
catraca de entrada. Que sufoco para sair! E como ele ficou bravo com a risada da
gente! Depois o aposentaram de vez, porque ele já não conseguia andar. Ora, ora,
já deve ter morrido. "
"Carlinhos! Éramos
colegas de turma de office boys! Que turminha! Pela manhã tomávamos café todos
juntos, uns quarenta! A firma dava pão, frios e refrigerante de máquina à
vontade. Carlinhos comia seis pães repletos! Ninguém ganhava dele. E não
engordava. Será que hoje ele é gordo?"
"Quanta saudade! Nunca
me importei em saber como estão. Que vida têm hoje? Quanto tempo faz? Deixe-me
ver: 1979, 1982, 1985... Meu Deus! Eu não acredito! Tudo isso? Será que estes
telefones funcionam ainda?"
Paulo vê que os números são
curtos demais. As linhas têm sete números. Então resolve procurar na lista
telefônica da internet. Ele os procura pelo nome, pois os conhecia decór, pois
auxiliava na distribuição das correspondências internas da empresa.
Ligou para o número do
Sérgio. Uma voz feminina atendeu. A resposta:
"Paulo,
sinto muito. O meu pai morreu há seis anos. Teve câncer. Ele sofreu muito. Você
trabalhou com ele? Ele sempre falava que um tal Paulo prometera ligar. E posso
dizer que ele esperava um telefonema seu. Que pena que não deu tempo. Obrigado
por procurá-lo."
Paulo ficou triste. Só
ligou porque viu na agenda. Então foi para o próximo número: o da Ritinha.
Procurou o nome, não encontrou. Mas lembrava-se do nome do rapaz com quem iria
casar-se. Procurou, achou, ligou. Foi ele mesmo quem
atendeu.
"Paulo,
tudo bem? Não, Paulo, eu me divorciei da Ritinha. Ela me traiu. Deixou a filha
comigo. Criei-a e levei-a à faculdade. Depois de formada casou-se. E deixou que
eu morasse com ela nos fundos da casa. Eu nunca mais me casei. Agora vivo aqui
cuidando dos meus netinhos. Obrigado por ter ligado, tá? Um
abraço!"
Que tragédia! Paulo nunca
esperou que Ritinha tivesse abandonado a filha e o marido. Talvez se a tivesse
procurado para repartir o evangelho com ela como tantas vezes prometera, Ritinha
pudesse ter se convertido e agido diferente... Quanta coisa poderia ter sido
compartilhada e melhorada, mas que não acontecera...
Paulo então ligou para a
casa do Seu Pacheco. Como a linha era 263, sabia que havia mudado para 3673 (a
sua mesmo era a mesma). Um homem atendeu.
"Oi, Seu
Paulo! O Pacheco era o meu avô. Ele morreu há trinta anos. Tenho muitas fotos
dele com aquele barrigão. Ele me colocava sobre a barriga e brincava de
cavalinho. Quanta saudade! O meu nome é o mesmo dele, papai o homenageou. Tenho
orgulho disso. Passe aqui pra tomar um café, combinado?
Tchau".
Paulo lembrou-se do dia em
que o Seu Pacheco saíra. Na porta da firma disse:
"Seu Pacheco, vou
passar em sua casa para tomar um café e levar uma bíblia e um disco de hinos
para o senhor ouvir, tá?" Essa bíblia e esse disco nunca chegaram para o
Seu Pacheco. E agora? O que fazer com a consciência
pesada?
Paulo liga agora para o
Carlinhos "bom-de-lanche". É ele mesmo quem atende o
telefone.
"Paulo, é
você mesmo? Rapaz, quanta história pra contar, né? Como era divertido! Lembra
daquele dia em que descemos na Praça da Sé pra comer coxinhas e perdemos o
dinheiro de volta? Tivemos que vir andando da Sé para a Lapa, três horas de
caminhada! Que bronca que o Sales nos deu, hein? Pois é. E dos lanches? Seis
todo dia! Hoje as firmas não dão nem um pão com manteiga. Velhos tempos! A gente
era feliz e não sabia!"
"Ah, sim,
me casei. Sou pai e avô, acredita? Quem diria? E sou crente também! Graças a
Deus! Eu me lembro de você lá no restaurante, toda vez que íamos comer você
abaixava a cabeça e orava. Aquilo me incomodava, sabe? Eu pensava: por que ele
não faz isso só pra ele e Deus? Hoje eu sei que aquilo mexeu comigo; se você não
tivesse orado em público eu não me interessaria pela fé. Eu cresci, me formei,
fui promovido, fiz carreira e hoje tenho o meu próprio negócio. Adivinha o que?
PADARIA!(risos, muitos risos). Gostei tanto de pães que sou o dono da padaria
agora! Venha aqui tomar um café reforçado. O pão é por minha conta. Deus te
abençoe, Paulo. Obrigado por lembrar-se de mim!"
Paulo dobrou os joelhos em
lágrimas. Orou assim:
"Senhor,
perdão! Quanta gente que passou pela minha vida, quantas histórias eu vivi, mas
quão pouco me importei com essa gente! Poderia ter sido mais presente, mais
amigo, mais influente. Eu me esqueci delas. Para algumas eu nem agradeci o que
me fizeram e o quanto me ajudaram, me ensinaram. Senhor, me perdoe! Ajuda-me a
ser mais amigo e a ter mais interesse por aqueles que fizeram e fazem parte de
minha vida. E obrigado, Senhor, por pelo menos eu ter influenciado uma pessoa a
buscar a Tua face, mesmo que tenha sido apenas por dar graças pela comida em
público. Em nome de Jesus, amém".
Paulo levantou-se, enxugou
as lágrimas, arrumou a garagem e foi para o escritório. Lá anotou o nome de dez
pessoas mais próximas e comprometeu-se a ser mais atencioso e a buscar mais
proximidade com elas, sem esperar que elas fizessem isso por ele. Afinal, se
alguém não começar, o ciclo de isolamento e de falta de calor humano nunca será
rompido.
E assim foi dormir, depois
de ter o amor reacendido por uma velha agenda de
telefones.
"Quero
trazer à memória o que me pode dar esperança" (Lm
3.21)
"Ninguém
tem maior amor do que este, de dar alguém a sua vida pelos seus amigos." (Jo
15:13)
Wagner Antonio de
Araújo
31/03/2017
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