domingo, 5 de abril de 2020

memórias literárias - 867 - DE NADA OU DE TUDO

DE NADA
 OU
DE TUDO
867
 
José Carlos de Tudo era o seu nome. Ele ocupava três cargos muito importantes, cobiçados e de repercussão nacional. O primeiro era o de líder de sua denominação cristã, tendo exercido o pastorado de grandes igrejas. Atualmente era uma espécie de decide-tudo de sua denominação. O segundo cargo era político: ele presidia o diretório de um partido de grande poder nacional e estadual. Tudo passava pela sua mão antes de ser decidido. Até o presidente da República o consultava de quando em quando. O terceiro era hereditário: ele era proprietário de uma grande indústria: tinha mais de cinco mil funcionários e administrara bem a herança recebida.
 
José Carlos de Nada era o nome do outro. Ele tinha três coisas em comum com o primeiro, mas às avessas. Ele era um pastor bem modesto de uma congregação pobre e distante na denominação do outro José Carlos. Ele também era do mesmo partido do outro, mas não ocupava nenhum cargo. Era apenas um filiado. Sempre o procuravam quando precisavam de seu voto. E o terceiro: fora funcionário da grande indústria do outro, tendo se aposentado dela há poucos dias. Como vêem, eram muito próximos e muito distantes.
 
José Carlos de Tudo adoeceu. Ele ficou terrivelmente enfermo. Foi internado às pressas e padeceu grandemente. Um batalhão de solidariedade se levantou. Na denominação cristã onde era líder o fluxo de mensagens nas redes sociais foi contínuo e constante. Igrejas fizeram vigílias, cultos, reuniões de oração e clamor pela recuperação de sua saúde. No partido político todos manifestavam o desejo de seu breve reestabelecimento. Grandes vultos nacionais entravam e saíam do hospital, principalmente quando as câmeras da TV estavam posicionadas e quando repórteres se dispunham a entrevistá-los. E na indústria de sua família os funcionários temiam a sua morte e a instabilidade de uma sucessão com pessoas que não procedessem como ele. Foi muita comoção.
 
José Carlos de Nada também adoeceu, tão ou mais grave do que o outro. Ele também ficou terrivelmente enfermo. Mas, diferentemente do primeiro, não tinha como ser internado num hospital particular. Ele era aposentado e não tinha convênio médico. Ele enfrentou as filas do hospital público. Pegou senha, esperou dias até ser chamado. Depois teve que pegar novas senhas para os exames. Na igreja alguns oravam por ele e outros pensavam em quem iriam convidar para sucedê-lo. Alguns enviavam pedidos de oração, quase nunca curtidos ou repercurtidos. Entre os colegas de trabalho apenas dois telefonaram, manifestando solidariedade. Não houve alguém que pudesse socorrê-lo adequadamente nesse seu sofrimento.
 
José Carlos de Tudo teve todo o tratamento necessário, todas as UTIs disponíveis, todos os remédios possíveis. Ele padeceu por duas semanas e, infelizmente, veio a falecer. Sua morte atingiu em cheio os meios de comunicação. Na denominação o seu retrato e as lamentações dos conhecidos líderes eram intensas. Nas igrejas havia choro e lamento. No partido político fizeram-lhe mil homenagens, sabendo que, quanto mais demonstrassem comoção, mais próximos estariam de ocupar o lugar dele. E na indústria houve dispensa do trabalho por três dias, pois foi o tempo de velório e sepultamento. Havia cinco canais de TV, a presença de toda a diretoria da denominação, o diretório do partido político e a diretoria da empresa com centenas de empregados. Foi assim que José Carlos de Tudo encerrou a sua vida.
 
José Carlos de Nada também morreu, mas no corredor do hospital, antes de fazer o último exame que iria determinar que tipo de remédio iria tomar. Ele não suportou tanta dificuldade. Os médicos notificaram a família e encaminharam o corpo para o IML (Instituto Médico Legal). Como a igreja ficava distante do cemitério e não tinham dinheiro para pagar um funeral caro, decidiram fazer o culto de despedida no velório do campo santo. A denominação foi avisada, mas sequer expressou condolências. Pelo contrário, pediram que pelo menos pagassem a anuidade dele na entidade onde estava filiado. Dos cinquenta membros da igreja vieram dois carros cheios, contando com a família. No partido político, quando souberam de sua morte, entraram no cadastro e anotaram "falecido", para que não ocupasse mais espaço no banco de dados. E na indústria onde trabalhou mandaram fazer uma coroa bem baratinha, porque só dois ex-colegas entraram na "vaquinha" para pagar a homenagem. Trinta pessoas se fizeram presentes. E tiveram que sepultar rápido, porque precisariam daquela área barata para outro funeral. E assim José Carlos de Nada encerrou a sua vida.
 
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Tristes realidades.
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Wagner Antonio de Araújo

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