DE
NADA
OU
DE
TUDO
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José Carlos
de Tudo era o seu nome. Ele ocupava três cargos muito importantes, cobiçados e
de repercussão nacional. O primeiro era o de líder de sua denominação cristã,
tendo exercido o pastorado de grandes igrejas. Atualmente era uma espécie de
decide-tudo de sua denominação. O segundo cargo era político: ele presidia o
diretório de um partido de grande poder nacional e estadual. Tudo passava pela
sua mão antes de ser decidido. Até o presidente da República o consultava de
quando em quando. O terceiro era hereditário: ele era proprietário de uma grande
indústria: tinha mais de cinco mil funcionários e administrara bem a herança
recebida.
José Carlos
de Nada era o nome do outro. Ele tinha três coisas em comum com o primeiro, mas
às avessas. Ele era um pastor bem modesto de uma congregação pobre e distante na
denominação do outro José Carlos. Ele também era do mesmo partido do outro, mas
não ocupava nenhum cargo. Era apenas um filiado. Sempre o procuravam quando
precisavam de seu voto. E o terceiro: fora funcionário da grande indústria do
outro, tendo se aposentado dela há poucos dias. Como vêem, eram muito próximos e
muito distantes.
José Carlos
de Tudo adoeceu. Ele ficou terrivelmente enfermo. Foi internado às pressas e
padeceu grandemente. Um batalhão de solidariedade se levantou. Na denominação
cristã onde era líder o fluxo de mensagens nas redes sociais foi contínuo e
constante. Igrejas fizeram vigílias, cultos, reuniões de oração e clamor pela
recuperação de sua saúde. No partido político todos manifestavam o desejo de seu
breve reestabelecimento. Grandes vultos nacionais entravam e saíam do hospital,
principalmente quando as câmeras da TV estavam posicionadas e quando repórteres
se dispunham a entrevistá-los. E na indústria de sua família os funcionários
temiam a sua morte e a instabilidade de uma sucessão com pessoas que não
procedessem como ele. Foi muita comoção.
José Carlos
de Nada também adoeceu, tão ou mais grave do que o outro. Ele também ficou
terrivelmente enfermo. Mas, diferentemente do primeiro, não tinha como ser
internado num hospital particular. Ele era aposentado e não tinha convênio
médico. Ele enfrentou as filas do hospital público. Pegou senha, esperou dias
até ser chamado. Depois teve que pegar novas senhas para os exames. Na igreja
alguns oravam por ele e outros pensavam em quem iriam convidar para sucedê-lo.
Alguns enviavam pedidos de oração, quase nunca curtidos ou repercurtidos. Entre
os colegas de trabalho apenas dois telefonaram, manifestando solidariedade. Não
houve alguém que pudesse socorrê-lo adequadamente nesse seu
sofrimento.
José Carlos
de Tudo teve todo o tratamento necessário, todas as UTIs disponíveis, todos os
remédios possíveis. Ele padeceu por duas semanas e, infelizmente, veio a
falecer. Sua morte atingiu em cheio os meios de comunicação. Na denominação o
seu retrato e as lamentações dos conhecidos líderes eram intensas. Nas igrejas
havia choro e lamento. No partido político fizeram-lhe mil homenagens, sabendo
que, quanto mais demonstrassem comoção, mais próximos estariam de ocupar o lugar
dele. E na indústria houve dispensa do trabalho por três dias, pois foi o tempo
de velório e sepultamento. Havia cinco canais de TV, a presença de toda a
diretoria da denominação, o diretório do partido político e a diretoria da
empresa com centenas de empregados. Foi assim que José Carlos de Tudo encerrou a
sua vida.
José Carlos
de Nada também morreu, mas no corredor do hospital, antes de fazer o último
exame que iria determinar que tipo de remédio iria tomar. Ele não suportou tanta
dificuldade. Os médicos notificaram a família e encaminharam o corpo para o IML
(Instituto Médico Legal). Como a igreja ficava distante do cemitério e não
tinham dinheiro para pagar um funeral caro, decidiram fazer o culto de despedida
no velório do campo santo. A denominação foi avisada, mas sequer expressou
condolências. Pelo contrário, pediram que pelo menos pagassem a anuidade dele na
entidade onde estava filiado. Dos cinquenta membros da igreja vieram dois carros
cheios, contando com a família. No partido político, quando souberam de sua
morte, entraram no cadastro e anotaram "falecido", para que não ocupasse mais
espaço no banco de dados. E na indústria onde trabalhou mandaram fazer uma coroa
bem baratinha, porque só dois ex-colegas entraram na "vaquinha" para pagar a
homenagem. Trinta pessoas se fizeram presentes. E tiveram que sepultar rápido,
porque precisariam daquela área barata para outro funeral. E assim José Carlos
de Nada encerrou a sua vida.
---
Tristes
realidades.
....
Wagner
Antonio de Araújo
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