sábado, 25 de abril de 2020

memórias literárias - 874 - REALITY SHOW

REALITY SHOW
 
874
 
Às vezes eu me pergunto: "Por que a política, a arte e os conflitos invadem a nossa mente com tanta frequência e força?" Parece que um político, ao dar um espirro, tem que nos ouvir a dizer: "Saúde". Temos a impressão de que precisamos seguir as pessoas passo a passo, desde quando acordam até quando se deitam. O mesmo acontece com os jogadores de futebol, os artistas prediletos e o mercado financeiro. Nesta crise de coronavirus queremos saber se algum médico na Inglaterra insinuou que houve sucesso com a vacina ou se um remédio está dando resultado nas tentativas da China ou se o número de mortos diminuiu um por cento. A nossa mente tornou-se platéia de um grande "reality show". Nós não temos mais privacidade e nem admitimos viver sem ela.
 
Não há nada de mal em mostrarmos uma foto familiar ou um vídeo de um momento alegre, desde que com cuidados de privacidade. Mas a pública exposição das instituições ou a nossa falta de pudor familiar tem levado ao caos a sociedade.
 
Até nas igrejas tem sido assim. Queremos que tudo seja transmitido, que tudo seja visto, que tudo seja testemunhado. Vivemos o fantasma da pouca repercursão de um vídeo transmitido ou buscamos meios de fazer a transmissão atingir centenas ou milhares de curtidas. Vivemos de público, de assistência, de popularidade, de ibope. As grandes redes de comunicação investem nos espetáculos de artistas diretamente de suas casas, pagando milhões em patrocínio, pois descobriram que se assim não fizerem não terão mais audiência.
 
Como as coisas eram diferentes antigamente! Quem era informado lia pela manhã o jornal impresso, comprado na banca ou entregue pela editora. As notícias eram comentadas, analisadas, feitas com mais cuidado, reflexão e análise. Ou então ouvíamos o noticiário matinal e nos informávamos das principais coisas que haviam acontecido ao longo do dia anterior. À noite assistíamos um noticiário e nos inteirávamos dos acontecimentos do dia. Mas era algo informativo,  não tóxico. Não tínhamos acesso a salas de reuniões dos outros, à cozinha alheia e ao dia a dia dos famosos. Quem queria isso comprava revistas inúteis que se dedicavam a tais alfarrobas.
 
Hoje tudo mudou. Somos expectadores da vida alheia. Somos lançados em reuniões como se lá estivéssemos assentados e como se pudéssemos resolver as coisas à distância. Infundem-nos a impressão de que, quando contrariados poderemos bater panelas ou ir até a avenida berrar, xingar e mostrar as massas nervosas, como se a vida não passasse de uma caixa acústica que repercute. Usamos as redes para fomentar mentiras, para disseminar ódio, para compartilhar a nossa contrariedade. Assistimos cheios de volúpia e lascívia o que acontece nas casas de confinamento de gente sem moral, que se despe, se xinga, se ilude e se mata diante das câmeras, ávida por um prêmio milionário que não chegará às nossas contas bancárias. E no caso das igrejas queremos assistir a reunião da diretoria onde houve conflito, ao atendimento privado do pastor e às suas reprimendas, aos detalhes dos cultos, vendo quantas lágrimas tal irmão derramou ou se o seu "glória a Deus" foi verdadeiro ou não! 
 
Leio em minha bíblia: Bebe água da tua fonte, e das correntes do teu poço. (Pv 5:15); Sejam para ti só, e não para os estranhos contigo. (Pv 5:17). O texto fala sobre a vida conjugal e a privacidade de um casal. Hoje eu vejo nas redes mulheres crentes a exibirem barrigas nuas para mostrar a gravidez, quase desnudas, com maridos apaixonados agarrados e sem a menor lembrança de que essas coisas são PRIVADAS, não PÚBLICAS! Vejo cristãos que se vestem e se despem sem pejo e que depois reclamam do assédio dos que assistem ou das piadas que fazem de seus corpos. Jogaram a água de suas fontes na bacia das massas e depois reclamam que invadiram as suas fontes!
 
Vejo reuniões de igrejas onde há conflitos a serem expostos com socos, xingamentos e pontapés, só para que se tenha assunto a se comentar na roda dos escarnecedores de muitos grupos de comunicação virtual. Vejo gente que envia política, fotos, vídeos e lives de análises dos mestres graduados em escola alguma, que muito falam e nada dizem, que falam do que não sabem, que acusam aquilo de que não têm prova, que são grandes técnicos de tudo, mas péssimos exemplos de virtude, de sucesso ou de seres humanos. Não são raras as vezes em que votamos em quem a tudo critica e depois nos arrependemos, pois não apenas fazem o mesmo que criticavam, mas destróem a tudo e a todos ao seu redor.
 
Vejo pastores que fazem questão de orar para que os outros vejam. Choram, gritam, falam as línguas estranhas da mentira e gemem para mostrar serviço, poder e espiritualidade. Sabe o que o Mestre afirma sobre isso? E, quando orares, não sejas como os hipócritas; pois se comprazem em orar em pé nas sinagogas, e às esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam o seu galardão. (Mt 6:5). O exibicionismo atingiu tamanha eficiência que hoje até a macumba, o candomblé, a umbanda, a mesa branca, o kardecismo e a mediunidade tornaram-se espetáculos para serem vistos em casa, sentados com uma bacia de pipocas nas mãos! As redes de televisão católica zombam de sua própria fé quando colocam roupas apertadas de cowboy em seus padres, os deixam mostrar todo o seu mundanismo nos bailões, enquanto as suas imagens de escultura ficam expostas diante da orgia mundana! A religiosidade virou apenas bibelô de enfeite na sala dos nossos shows! Os cultos viraram programas de auditório e as pessoas deixam pregações e louvores rodando nas mídias enquanto estão no banheiro a fazer necessidades! E disse: Não te chegues para cá; tira os sapatos de teus pés; porque o lugar em que tu estás é terra santa. (Ex 3:5). A reverência mostrada por Jesus ao dobrar os joelhos no falar com o Pai, ou ao erguer os olhos no abençoar dos alimentos, ou em ordenar que se orasse em privado diante do Pai, ou com respeito ao fazê-lo publicamente, estão longe da maioria dos cristãos!
 
Enquanto assistimos o "reality show" da política, dos artistas e das religiões a nossa família e a nossa vida estão abandonadas. Os pais celebram a vitória da personagem da novela, a derrocada do político do qual não gostam e o prêmio do único que resistiu a ser expulso de uma casa de confinamento, e não olham para o filho ou a filha que estão trancados no quarto, ou absorvidos por um celular, ou em relacionamentos libidinosos com os seus namorados, ou a usar drogas junto com os amigos, ou a atravessar uma depressão profunda por se sentirem sós. Cuidamos tanto da vida dos outros e deixamos a nossa em ruínas. Bem, talvez vá servir como espetáculo num programa policial de baixa qualidade, quando as câmeras virem à nossa casa mostrar onde foi que alguém se matou ou que matou a outrem...
 
Voltemos à privacidade de nossos corações! Limitemos o acesso às nossas intimidades! Não sejamos expectadores da intimidade de outrem! Oremos pela política e auxiliemos no que estiver ao nosso alcance, mas não nos deixemos enlouquecer por colocar a vida deles como uma sequência da nossa! Tornemos a mensagem do Senhor pública em nossas igrejas, levando pregações e hinos evangelísticos ao povo, mas não transmitamos as nossas reuniões privadas e as nossas orações íntimas ao Senhor. Quem tem que saber de nossas preces é o Senhor, não o auditório! E que não lavemos mais as roupas sujas em público, mas que o façamos no privado de nossas relações. Que não exibamos mais os nossos corpos ou o corpo de nossos cônjuges. São nosso patrimônio e não devem servir de inspiração sexual ou piada para ninguém!
 
Não erreis: Deus não se deixa escarnecer; porque tudo o que o homem semear, isso também ceifará. (Gl 6:7)
 
Wagner Antonio de Araújo

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

memórias literárias - 1477 - CHORA, Ó RAQUEL...

  CHORA, Ó RAQUEL...   1477   Quando o Senhor Jesus Cristo fez-Se homem, nascendo do ventre de Maria, Herodes o Grande desejou matá-Lo...