quinta-feira, 6 de junho de 2024

memórias literárias - 1489 - SOU O QUE ESCREVO?

 SOU O QUE

ESCREVO?
1489
 
Nós, que escrevemos não o fazemos apenas para receber os parabéns dos leitores. Aliás, a nossa sociedade não lê mais; ela é analfabeta funcional. As pessoas hoje assistem vídeos, ouvem podcasts e leem coisas alusivas a 5 áreas principais do pseudoconhecimento: críticas religiosas, críticas políticas, fofocas, esportes e futilidades. Qualquer texto que fuja ao padrão imediatista dos textos, inclusive que tenha mais de 10 linhas de redação é deixado para nunca mais ser consultado.
 
Dito isso quero testemunhar o dissabor obtido com a busca por um autor.
 
Como estou recadastrando a minha biblioteca de livros em papel tenho encontrado livros das diversas áreas do saber. Quando me interesso por um título vejo o autor e busco informações sobre a sua vida. Os meus estão geralmente mortos, pois são livros antigos. Mas, de vez em quando algum livro mais moderno aparece.
 
E foi assim que identifiquei um livro com vastas informações sobre a fundação da cidade de Salvador, de São Paulo e os primórdios do Brasil-colônia. Achei sensacional a redação do autor, a elegância do livro e o conteúdo composto das informações. Num ímpeto instintivo fui buscar sobre o autor as informações, principalmente se ele estava vivo ainda.
 
Que decepção! Que tragédia! Não apenas está vivo como é exatamente o oposto da elegância literária de suas páginas em papel. Ele é uma pessoa com linguagem chula, participa de múltiplos podcasts, fala promiscuidades, tem posições políticas mutantes e agride os seus questionadores com palavras de baixo calão.
 
Olhei bem para o livro, olhei para a cara do autor nos vídeos publicados e pensei: esse autor não corresponde ao que está escrito. Ele é um blefe!
 
Muitos de nós somos também um grande blefe. Blefamos na igreja, quando oramos, quando cantamos, quando erguemos a mão em compromisso para algum chamado ou algum compromisso e, no dia seguinte, em nosso ambiente de leveza e de desprendimento agimos completamente ao contrário do que mostramos na igreja! Alguns de nós blefam diante das câmeras, pregando algo que não vivem. Outros de nós, no afã das promoções e das graduações em mestrado, doutorado e afins, nos valemos de serviços pagos, de copia-e-cola, de frases que arrumamos aqui e ali e, em consequência das demandas obtemos os certificados, papéis e títulos vazios de uma mentira acadêmica.
 
Hoje um artigo religioso, nas publicações denominacionais, pelo menos na minha, se não tiverem uma informação de 15 linhas das graduações e dos títulos do articulista não podem figurar na publicação. Conheço muitos destes, que não valem a tinta que usam, ou melhor, o editor de textos onde escrevem seus artigos.
 
Mas, como sói acontecer, viro a mesa, olho-me no espelho e me pergunto: Wagner, seria você um blefe também? Você é o que prega, o que escreve, o que fotografa, o que filma, o que publica? Você material autêntico ou não passa de mais um ser esperto e mascarado das mídias?
 
Esse tipo de pergunta é desconfortável. Não somos perfeitos. Não somos o que deveríamos ser. Mas há algo que pode nos separar dos blefes e dos autênticos.
 
Os blefes não estão preocupados com a verdade. Eles mentem sem qualquer pejo, fingem, blefam, afirmam num artigo ou vídeo e se desmentem no outro, dependendo dos benefícios que acreditam obter. Eles são camaleões: uma cor, uma linguagem, uma roupa e uma mensagem para cada público, para cada mídia, para cada auditório, para cada interesse.
 
Os autênticos são o que são: a mesma coisa nas telas, nos podcasts, nos vídeos e nos textos. Nem mais e nem menos. Simplesmente eles mesmos.
 
Quanto a mim, se eu escrever algo que não corresponde ao que creio, ao que vivo ou ao que defendo, então sequer publico. O meu pejo não permite. Eu tenho vergonha na cara. Eu tenho caráter e honro o nome que recebi de meu pai. Além disto eu não suportaria enxergar-me a falar e me contradizer ao mesmo tempo. Até para participar de alguma atividade pública em algo com o que não concordo sinto-me desconfortável. Há alguns dias tive que me retirar de um evento, pois tudo o que ali acontecia era antagônico ao que eu cria.
 
Um dia, diante do JUSTO JUIZ seremos desmascarados. Alguns de nós ficarão envergonhados por serem vistos como realmente são: hipócritas, atores, fingidos. Outros tantos, e espero sinceramente encontrar-me entre estes, não terão máscaras para tirar. Responderão pelos seus atos e manterão firmes as posições que abraçaram, quer tenham sido felizes ou não. Assumirão a responsabilidade e dirão: "Bendito seja Deus, eu estava certo.", ou "Me perdoe, meu Deus, eu estava errado.".
 
Por fim, eu iria cadastrar este livro como História do Brasil. Mas ele não merece, não pelo conteúdo, mas pelo demérito do autor. Então recebeu o selo "diversos", e isto pela minha complacência, não pela dignidade de quem escreveu.
 
E tenho dito.
 
Wagner Antonio de Araújo
 

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