quinta-feira, 2 de maio de 2013

memórias literárias - 76 - UM VELHINHO, UM VIOLÃO

76 - UM VELHINHO, UM VIOLÃO


Mais uma daquelas tardes geladas do outono paulista, onde o vento empurra nuvens cintilantes de extrema altura, e move os cabelos das lindas morenas da cor de Madalena.

E eu,
ansioso,
cansado,
desesperado,
animado, saio correndo pelos shoppings da cidade,
procurando,
caçando,
garimpando,
observando,
preparando minha viagem.

E eu,
atrasado,
suado,
esquecido,
esfomeado,
estonteado,
consigo comprar o que o pouco dinheiro permite,
e decido correr,
ir em frente,
subir,
navegar,
acelerar,
buscar o que me falta na avenida que tem a cara de cada paulistano, de cada um dos incansáveis trabalhadores que se saúdam com um corrido "estou com pressa, a gente vai se falando".

E eu,
inconformado,
enfurecido,
nervoso,
afoito,
procuro um estacionamento para o meu velho astra descansar. Deixo o carro nas mãos incansáveis dos operários da comodidade,
enquanto ando,
corro,
paro,
ouço,
olho,
tremo, ambientado com os sons da minha cidade:
carros freando,
buzinando,
motoristas berrando,
xingando, pedestres discutindo,
atravessando,
correndo,
pulando.

E eu,
curioso,
admirado,
estupefato,
impressionado, sinto algo diferente em plena tarde de correria e multidão.
O que seria?
Um gás?
Uma luz?
Um perfume?
Um odor? Procurei por todos os lados.

Parei no meio da multidão
e olhei
para cima,
para a direita, rumo ao Paraíso,
para a esquerda, caminho da Consolação,
para frente, de fronte à Nove de Julho,
para trás, do lado do Ibirapuera.

E eu, impressionado, encontrei o que buscava:
um idoso,
com uma caixa de som,
com três pequeninos autofalantes,
sentado numa cadeira, exibindo aos transeuntes um cd, desses que se vendem em cada esquina.

Mais um pirata urbano.

Mas, aquele aroma,
aquela fragrância,
aquele som, estava acalmando quem passava;
trazia à memória um pouco da ternura perdida nas buzinas,
um pouco da poesia desaparecida no trânsito,
aquele som estava medicando o estresse de quem ouvia.

E eu, como sempre, buscando descobrir novas coisas, mesmo atrasado, cheio de coisas a fazer, parei para ouvir.

E que som mavioso,
que música encantadora,
que lenitivo,
que tranqüilizante!

- Boa tarde, senhor. Que cd de violão é esse? O senhor que toca?

- Não, mas é alguém que amo muito: meu filho Diógenes.

Seus olhos vermelhos e cansados brilharam ao falar do filho. E, como sou eternamente sensível à paternidade, parei, olhei e senti.
Que orgulho,
que respeito,
que honra,
que felicidade!
Ter um filho artista,
arteiro,
artesão,
ator,
 doutor,
tocador!

Descobri que o Sr. Gérson estava a vender os CDs do filho.

Pensei que seria uma coisa banal,
comum,
sem qualidade,
de um pobre artista sem público,
sem beleza,
sem futuro.

Confesso que comprei. E comprei pelo brilho no olhar do Sr. Gérson. Mas também pelo bem que me fez na estressante tarde paulistana, um dia antes de zarpar para meu destino lusitano.

Ah, como me enganei!

Eu,
enganado,
ludibriado pela desconfiança,
cheio de preconceitos contra o cd do Sr. Gérson,
descobri uma verdadeira e legítima obra de arte, algo digno das mais requintadas platéias e apto a rodar nas rádios mais importantes da cultura brasileira.

Uma pepita de ouro,
um diamante,
uma luz em meio às trevas artísticas.

Então eu,
cheio,
repleto,
transbordando,
desesperadamente coloquei-me a escrever esta crônica urbana,
e encaixei um pedacinho da música que me curou nesta tarde, curou-me do vício de esquecer-me que, acima de tudo, há uma paz que emana da alma em harmonia, que se deixa envolver pela doce e maravilhosa melodia da vida, e permite-se voar como um pássaro no céu azul da existência.

Quanto mais se essa alma já souber seu destino e paradeiro,
quanto mais se seu porto for certo e garantido,
se tiver a alegria de voar aos céus,
não o azul do outono paulista,
mas cintilante, do Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Apenas uma tarde.
Um velhinho.
Um violão.
A Avenida Paulista.
E uma criança encantada!

São Paulo, capital, tarde fria de outono, maio, 9, 2006
Wagner Antonio de Araújo

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