segunda-feira, 20 de maio de 2013

memórias pastorais - 83 - DIVAGAÇÕES NUM DIA DE DESPEDIDAS


 83 - DIVAGAÇÕES NUM DIA DE DESPEDIDAS
19/05/2013
Este foi um daqueles domingos inesquecíveis, não tanto pelo tamanho dos eventos, mas pelo que eles significam e significarão em minha vida.
Ontem, ao terminar de inspecionar os meus e-mails, deparei-me com a notícia que me causou profunda comoção: o Pastor Rivas Bretones, amigo de longa data, havia falecido no hospital, na luta contra o câncer. Eu sequer sabia de sua enfermidade, pois até então se pensava que era um problema de refluxo, o que, infelizmente, caminhou para um diagnóstico tardio de câncer no pulmão. Para mim, o querido amigo havia viajado para os Estados Unidos em visita a sua querida irmã Laura, mas a verdade era bem outra: estava travando dura luta contra a enfermidade.
A notícia chegou a mim no momento em que eu preparava a reflexão do domingo à noite, intitulada A BREVIDADE DA VIDA. Que ironia do destino! Eu, depois de anos, convidado para pregar no púlpito do saudoso conselheiro Pastor Josué Nunes de Lima, agora teria que provar de minha própria mensagem, visitando a despedida do Pastor Rivas no Cemitério da Paz!
Coloco-me na pele daqueles que são idosos e que vêem cada um de seus amigos partirem. Eles olham aos noventa anos e contemplam uma geração que não é a sua, com costumes que não são os seus, com pessoas com quem não têm os mesmos laços de intimidade, afetividade, cumplicidade e compartilhamento de experiências e cultura. E sentem-se absolutamente sós! Vê-se nos viúvos ou viúvas bem idosos o partir próximo quando perdem aquele referencial que lhes servia de âncora da temporaneidade, única testemunha ocular dos anos vividos de suas infâncias e juventudes. Por lhes faltar um partilhar de igual para igual logo sucumbem e adormecem.
Todas essas reflexões vieram-me à mente. Eu, um homem de meia-idade, de 47 anos e alguns meses, que sou contemporâneo da penúltima geração, que tive o privilégio de conviver com alguns dos últimos ícones espirituais de minha denominação e de outras agremiações evangélicas, verifico a grande solidão e o grande vazio de cada herói que parte e sucumbe diante do fim de seus dias. Aos poucos os referenciais que tive em minha vida de crente, de seminarista, de pastor e, posteriormente, de atuante denominacional, estão saindo da vida para adentrar às páginas esquecidas da história. Esquecidas muito cedo, pois uma das primeiras providências dos que ficam é decretar um "tempo novo", um "novo ministério", "uma nova unção" e fazem o possível e o impossível para sepultar qualquer lembrança dos obreiros que passaram, que fundaram suas igrejas, que abriram a picada na mata, que suportaram as duras lidas, as perseguições, a evangelização difícil, as construções das casas de culto, o doutrinamento, o discipulado. No máximo, o que se guarda é uma sala com seus nomes ou um monumento na área de entrada. Alguns, se possível, até isso tirariam.
Penso nos poucos que restam. Sim, os poucos ícones que continuam vivos e atuantes. Penso naqueles que não se venderam às facilidades do evangelicalismo moderno, midiático e mundano. Penso nos que não aceitaram mudanças pelas mudanças, que não trocaram o púlpito pelo palco, o louvor pelo show, a adoração pela coreografia, a reverência pelo ambiente de carnaval, a bíblia pelo livro de auto-ajuda, a doutrina pelo "achismo". Penso naqueles que se aposentam para não ver as barbaridades das quais poderiam ser vítimas, pois suas "novas" ovelhas, seduzidas pelo ruído dos lobos disfarçados de ovelhas e de Satanás disfarçado de modernidade eclesiástica, estariam a ponto de fazê-los abortar do ministério à força. Penso naqueles que pregaram, que ensinaram, que presidiram, que lutaram, que trouxeram progresso, e que agora, envelhecidos pelo tempo, encontram-se nas casas de repouso, nos fundos das casas dos filhos, ou vivendo de favores de algum crente generoso. Estes nunca recebem convites para nada, muito menos visitas ou lembranças, exceto de heróis como o conhecido irmão Grigório, que, conquanto não seja pastor, não esquece de nenhum dos operários do Reino, principalmente dos carcomidos pela batalha dos anos.
Penso no imenso vazio que fica. Rivas Bretones partiu. O que fica em seu lugar? Josué Nunes de Lima já está na glória celestial. João Rodrigues dos Santos, saudoso paranaense que com amor pastoreou a IB Gileade, na zona norte de SP, há anos partiu para Jesus. E o que dizer dos mais antigos? Parece que a nova geração não aceita ter sido sucessora dos pioneiros, dos que lhes trouxeram as tochas do evangelho; eles querem reinventar a roda e sentem-se ministros de um novo evangelho, ao gosto do freguês. E os resultados não custam a vir. Sei de tantos casos! Uma igreja, cujo pastor faleceu, grande lutador que veio da Letônia, jamais acertou com o seu obreiro e hoje tem o ministério vacante mais uma vez. Outra, cujo pregador era um mestre dos púlpitos e da oratória, teve por sucessor alguém que se ofendia em ouvir alguém falar bem do antecessor. Terminou bestialmente o seu pastorado. Agora ouvi de outro que mandou tirar todas as benfeitorias que lembravam o fundador de sua congregação, pois eram coisas bobas e agora viveriam "uma nova história".
Meu Deus, que geração é essa? Sei que há pastores aposentados que me lêem. Sei que há crentes perplexos e que me dizem: "pastor Wagner, onde estão os pastores que amavam a Cristo e amavam o rebanho?" Bem, posso dizer de poucos, mas posso garantir que há sete mil joelhos que não se dobram e nunca se dobrarão ao Baal da ingratidão.
E eu, com minha limitação, com as minhas memórias em ebulição, com o meu peito vazio com a perda dos amigos, com a ausência dos meus mestres tão amáveis e tão bíblicos, só posso concluir o seguinte: a tocha veio para a mão de outros mais jovens e isso me inclue nesse grupo. Que legado eu deixarei para a próxima geração? Que tipo de pastor eu devo ser para que outros vejam em mim o que eu vejo nos meus mestres que estão partindo? Que dignidade ou capacidade tenho? Sei que nenhuma. Mas sei que a nossa capacidade vem de Deus, a mesma que esteve disponível aos meus mestres que partem. Dispor dela é decisão nossa, que passa por joelhos calejados de dobrarem-se em oração, de bíblias surradas de tanto serem lidas e de coração crescido de tanto amar. Ah, amar!
Talvez a minha geração não tenha aprendido a amar. Amar as ovelhas, as pessoas da igreja, não as considerando massa de manobras ou apenas números para vaidade pessoal: "pastoreio mil pessoas". Pessoas não são como gado, contadas a grosso, mas são ovelhas, chamadas pelo nome, uma a uma. E amar ao rebanho, às pessoas, é o que a minha geração e as próximas não estão aprendendo nos bancos das faculdades teológicas modernas. Aprendem a discutir o indiscutível, a inspiração das Escrituras Sagradas, aprendem a duvidar de Deus, mas não aprendem a conviver com as pessoas salvas pelo Senhor. Creio que amar pessoas seja um dos segredos dos mestres. Rivas Bretones, Josué Nunes de Lima, João Filson Soren, Manoel Avelino de Souza, TC Bagby e tantos outros amavam as suas ovelhas. E como amavam.
Também não temos aprendido a ter solitude. Não a solitude de solidão, de depressão, de vazio; essa encontramos com facilidade no acúmulo de atividades ou no abandono da família. Solitude é aquela doce comunhão diuturna com o Senhor. Pastores não oram mais. Oram sim, mas não oram como deviam. A maioria mente. Diz que ora, mas apenas reza. Diz que ora, mas apenas cumpre o protocolo. E eu, no acúmulo de atividades acabo sendo seduzido pelo canto do "fazer coisas importantes" e nem me recordo que Maria, a irmã de Marta, recebeu os elogios por gastar tempo com o Senhor, muito mais do que Marta, que se cansava em fazer coisas para o Senhor. Comungar é mais importante do que fazer coisas. E a opção quase nunca é a solitude. Acredito que os meus antigos e saudosos amigos conheciam muito mais de Deus num dia de comunhão do que eu em toda a minha vida...
Lembro-me quando o Pr. Timofei Diacov (graças a Deus bem vivo ainda, e há de ser assim por muitos mais anos, é o que peço ao Senhor), no afã de me dizer como eu deveria ler a bíblia, falou-me de forma clara: "não vá à bíblia para que ela concorde com suas idéias; renda-se ao que ela diz, e você encontrará a vontade do Senhor". Conselho magnífico, que me motiva dia após dia a andar e a remar contra a maré das mudanças, pois a minha bíblia não mudou, não muda e nem mudará. Não importa o que eu ache, o que a minha filosofia, a minha sociologia, o meu coração pecador considera; é a bíblia a minha única regra de fé e prática, e sem dissecações empíricas ou modernistas. Que bênção manusear a minha bíblia de 1979 e ver que ela, à semelhança do meu Deus, não mudou!
Ah, quantas memórias! Quantos pensamentos! Não sei quanto tempo eu ainda viverei, nem por quanto tempo pastorearei a mesma igreja ou qualquer outra. Mas uma coisa eu quero: jamais me esquecer dos heróis que se vão. E nesse afã tudo farei para torná-los imortais para quem quiser ouvi-los ou lê-los, através de publicações, de blogs, de memórias, de entrevistas. Não devemos deixar a tão grande nuvem de testemunhas apenas subjetivamente, mas usar de seus registros deixados, como usamos os de Spurgeon, de Bunyan, de Calvino, de Lutero, de Langston, de Crabtree. Eles precisam continuar a falar e sua memória precisa ser lembrada.
Quero caminhar com o meu Senhor até o fim. E estar pronto para partir dia após dia, e pronto para ficar mais um pouco a cada dia. E que, no final da caminhada, eu possa dizer como o apóstolo Paulo, Rivas Bretones, Josué Nunes de Lima, Rubens Lopes, TC Bagby, WC Taylor, João Rodrigues dos Santos, "combati o bom combate, terminei a carreira, guardei a fé".
Ajuda-me, Senhor, a ser fiel. E a seguir os bons exemplos daqueles que recolhes.
Amém.
Wagner Antonio de Araújo

com o Pr. Josué Nunes de Lima

com o Pr. Rivas Bretones

Pr. João Rodrigues

Nenhum comentário:

Postar um comentário

memórias literárias - 1477 - CHORA, Ó RAQUEL...

  CHORA, Ó RAQUEL...   1477   Quando o Senhor Jesus Cristo fez-Se homem, nascendo do ventre de Maria, Herodes o Grande desejou matá-Lo...