terça-feira, 25 de agosto de 2020

memórias literárias - 915 - PANOS DE PRATO

PANOS DE
PRATO


915
Dona Maria estava mostrando a sua casa para as amigas. Uma casa bem chique, bem mobiliada. Havia uma cristaleira belíssima, uma prataria chinesa que dava gosto. Mas ela dizia várias vezes, enquanto exibia a sua cozinha: "vou mostrar o mais especial". Bem, as mulheres esperavam algum equipamento de última geração, uma panela dourada ou uma coleção de talheres artesanais. Foi então que abriu um armário de madeira de lei. Ali estavam, em pequenos cabides, vários panos de prato. As mulheres não entenderam nada.

Não eram panos novos, muito trabalhados, de grifes internacionais. Eram panos rotos, alguns até rasgados, manchados pela ação de gorduras e anos de uso. Alguns eram panos que as companhias de gás ofereciam com a compra de botijões. Outros eram comprados nos semáforos, onde pobres senhoras vendiam seus tecidos para a sobrevivência. Ainda outros mostravam-se muito antigos, com bordas trabalhadas em crochê e renda.


- Amigas, aqui estão as maiores riquezas de minha cozinha. Estes panos de prato foram os grandes responsáveis pelas louças limpas e brilhantes, pelo brilho e a limpeza de minha mobília de cozinha. Nenhum deles esteve presente nas festas que dei, nas recepções que fiz ou junto dos guardanapos de linho que decoravam os pratos. Eles nunca participaram das festas. Sua chegada era após as refeições, quando todos saíam da mesa e só sobravam as louças sujas na pia. Eles nunca eram vistos, nunca foram honrados, nunca foram valorizados. Um dia, quando a empregada enxugava a louça o pano de prato caiu. Eu fui pegá-lo. Ao ver o seu desgaste e o quanto me fora útil, tive pena e pensei naqueles que tanto servem e que nada recebem...

- Pensei nas mães que embalam os filhos e depois são esquecidas num quarto anexo ou num asilo, ignoradas nas formaturas ou nas celebrações da prole. Pensei nas mãos calejadas dos pais, que atravessavam dias a fio no esforço da mantença caseira e que, depois, quando velhos, nem visitas dos filhos e netos recebem. Pensei nas babás que tanto cuidaram das crianças dos patrões e que, depois, foram demitidas, esquecidas, arrancadas das fotografias e relegadas a simples ex-prestadoras de serviço. Pensei nos professores que ensinaram-nos a ler e a escrever e que hoje, depois de tanto tempo nem nos lembramos de seus nomes...

- Pensei no entregador de cartas que por anos e anos trouxe a nossa correspondência, ou no padeiro que assou os nossos pães na padaria a quem nunca agradecemos. Pensei no dentista que acompanhou o desenvolvimento dos nossos dentes e no pediatra que viu os nossos filhos crescerem. Pensei no guarda noturno que apitou por anos nas suas rondas noturnas e no inspetor da companhia de luz, que consultava o reloginho de consumo mês após mês. Pensei no vizinho que tomou conta de nossa casa quando saíamos em viagem, na empregada que conhecia cada vão nos móveis e cada centímetro de espaço em nossos cômodos, e nas pessoas que nem sabemos que olhavam por nós...

- Pensei nos pastores que foram esquecidos nas festas e nas comemorações, que nunca receberam algo precioso de nossas mãos, que nunca foram contados como pessoas importantes em nossa família ou em nossa história, e que sempre estavam prontos e dispostos a nos ajudar nas horas de crise, de choro, de luto, de briga, de desavenças, de aconselhamento. Pensei nos ministros religiosos que estiveram à beira do leito no hospital, na celebração do funeral de gente amada e a orar por nossas lutas, nossas necessidades. Pensei em cada sermão entregue, em cada aula dos professores de EBD e o quanto nunca os honramos, nunca os exibimos em nossas fotos, porque nunca os convidamos para estarem conosco...

- São todos panos de prato. Nunca estão no melhor da festa. Eles até estão por perto, mas jamais são convidados a estar à mesa, junto de nós. Mas sempre aparecem quando a festa termina e sobra trabalho, sem jamais reclamarem. Nós nos socorremos de suas virtudes. Eles gastam-se por nós; fazem tudo o que podem para nos suprir; adquirem marcas do tempo e sequelas de seu uso continuado, cicatrizes do amor prático. Jamais ficam como novos, como quando os conhecemos e tudo porque nos serviram, nos amaram, nos ajudaram, nos ampararam. As rugas no rosto e as marcas nas mãos são testemunhas de vidas gastas em nosso favor...

- Tudo isso aquele pano de prato caído no chão me falou. E desde então eu cuido deles como jóias preciosas, como tesouros de fenomenal valor. Eles valem por tudo o que fizeram, por tudo o que não receberam e por tudo o que ajudaram. Eu os tenho como o maior tesouro de minha cozinha. E por causa deles fui em busca daqueles que tanto bem me fizeram e que de mim nunca receberam um obrigado. Ah, que preciosidade eu encontro nestes velhos e rotos panos de prato! Bem, vamos ao nosso café de hoje...

Dona Maria estava certa. Nós desprezamos os panos de prato. Eu, ao passar as roupas aqui em casa, dou um cuidado especial nos panos de prato. Faço questão de deixá-los cheirosos, bem dobrados, retinhos e muito, muito perfumados. É o mínimo que posso fazer em honra de quem tanto nos serve. Quisera Deus que pudéssemos fazer isso para com as pessoas que silenciosamente nos servem, nos ajudam, nos amparam, se preocupam conosco. Olhe a mulher que está no fogão agora, ou na pia a lavar a louça. Olhe para quem zela de seus filhos ou para o pastor, que silenciosamente ora por sua vida e lhe envia mensagens. Não será ele também um PANO DE PRATO?

É hora de sermos mais gratos.


Wagner Antonio de Araújo

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