sábado, 21 de março de 2015

memórias literárias - 160 - TOLERÂNCIA ZERO

TOLERÂNCIA ZERO


160
Na entrada do restaurante o recepcionista acolhe com um sorriso:
- Bem-vindos, amigos! Mesa para dois?
Felix, o marido, responde imediatamente:
- Não, mesa para um só. Eu sento e minha esposa fica de pé!
- Pára com isso, Felix! Viemos aqui para relaxar, não para brigar!
Seguiram para a mesa, sentaram-se e pegaram o menu. Outro garçon aproxima-se e fala:
- Vão almoçar, senhores?
- Não, viemos jantar ao meio dia, não gostamos de almoçar a esta hora!
- Felix, eu já avisei! Se continuar assim largo-lhe sozinho aqui!
Felix não era um homem mau, mas estava no limite. Tudo era motivo para se aborrecer. Não perdoava nada! Acabava sendo grosseiro com suas respostas prontas e imediatas. Três casos foram inesquecíveis.
O primeiro foi na igreja. O pastor mandara que todos se dividissem em duplas. O irmão que se aproximou dele perguntou:
- Posso orar pelo senhor, irmão Felix?
- Não, não pode. E se orar eu grito!
O segundo foi no estacionamento. O funcionário o viu andando pelos corredores e gritou:
- Procurando uma vaga, patrão?
A resposta veio certeira:
- Não, estou desfilando com o meu carro para fazer inveja aos demais! Tire uma foto!
O terceiro foi perigoso. Estava para entrar no banco. O sensor apitou quando tentou passar. O segurança falou com autoridade:
- Tem objetos de metal no bolso?
A resposta não tardou:
- Não, é que os meus ossos são de titânio e o meu punho de aço; quer experimentar?
O segurança sacou de um revólver e com muito custo foi que o gerente apaziguou a situação, exigindo que Felix fosse embora.
Maria, a esposa, já não suportava mais. Não casara com um homem grosseiro assim. Ele era gentil e educado, polido e calmo. Foi justamente a sua elegância e educação que o atraíra para ela. Eram jovens, ele ainda servia o exército. O que teria acontecido? Resolveu agir e deu-lhe um ultimato:
- Felix, se você não procurar ajuda eu vou lhe deixar. Prefiro viver sozinha do que passar o resto da vida ao lado de um cavalo que só dá coices. Quero que vá procurar o Pastor Pedro. Ele é um bom conselheiro e diz sempre que ora por nós. Quero que vá falar com ele.
- Sim, vou procurá-lo. Mas será para dar-lhe um tapa na orelha, porque não admito que ninguém se meta na minha vida.
- Então está bem. Estou indo embora.
E Maria não estava brincando. Foi ao quarto e começou a tirar as roupas do guarda-roupa. Felix, a princípio, pensou que se tratava de encenação. Contudo, quando viu o táxi parado na porta e as malas sendo carregadas, assustou-se.
- Você está blefando, não é, Maria? Só porque não vou falar com o pastor você está querendo me deixar?
- Não, Felix. Eu só não quero mais estar ao lado de um homem que irá explodir a qualquer momento, que me faz passar vergonha em público e que não consegue mais relacionar-se com ninguém. Ou você conversa com o pastor ou eu estarei indo embora, e não voltarei mais.
Felix ponderou, pensou, refletiu. Maria não era mulher de voltar atrás no que dizia. Aliás, foi isso que o atraiu a ela, seu caráter, sua decisão, sua personalidade marcante e profundamente decidida. Maria era mulher temente a Deus. Fora ela que o levara à igreja, quando ainda não era convertido. Se para ela significava tanto procurar ajuda com o pastor, então não lhe restava alternativa.
- Está certo. Mas será uma vez só, e já vou avisando: não trará nenhum resultado.
Maria aceitou a proposta. Ligou para o pastor, marcou o horário e foram à igreja. Chegado o momento o pastor abriu a porta e Felix entrou. Sentaram-se e o pastor olhou firme para Felix, em absoluto silêncio.
- O reverendo não vai me dizer nada?
- Quem me procurou foi o senhor, Irmão Felix, não eu. Quem quis conversar comigo foi o senhor. Estou aqui para lhe ouvir.
- Não fui eu quem lhe procurou; foi minha mulher. Quer que eu a chame para que ela converse? Afinal, se ela marcou, ela deve ter assunto; eu não tenho.
O Pastor Pedro, que já estava bem preparado para os atos de "tolerância zero" do Felix, apenas olhava para ele, sem dizer nada. Encarava-o com seriedade, mas sem pressa. Felix, depois de alguns minutos, ficou sem jeito e não sabia para onde olhar. Às vezes olhava para o teto, outras para os objetos na mesa, outras para as mãos que não paravam de se movimentar.
Algo em especial chamou-lhe a atenção. Um vaso de cactus, ao lado do computador.
- Que planta é essa, pastor?
- Ah, esse cactus. Foi um presente de minha mãe.
- E por que está desse jeito?
O vaso estava embrulhado com borracha. A planta, que media uns 20 centímetros, estava envolta com uma rede de arame, e algumas agulhas o espetavam na parte de cima. Seus três galhos estavam amarrados com arame farpado.
- É que eu fui espetado por um cactus quando era criança. Estava brincando, caí sobre um, creio que devo ter sido espetado por uns 50 espinhos. Desde então tenho pavor dessa planta. Como foi mamãe quem o deu, recebi-o, mas quero ter certeza de que não irá me machucar mais.
- Pastor, isso é loucura! O senhor está espetando o cactus com agulhas! Ele não é culpado pelo seu tombo e pelos espinhos que lhe feriram!
- E daí? Não é um cactus? Acho que todo cactus deveria ser espetado para ver o quanto nos machuca.
- Bom, pastor, acho que o senhor é louco. Me perdoe, mas isso não é normal.
- Tem certeza, irmão Felix?
- Claro! Nunca ouvi falar de alguém que espeta cactus por vingança ou por precaução!
- Eu ouvi.
- Ah, é? E quem, além do senhor?
- Você, irmão Felix!
Felix levantou-se veemente e gritou:
- Eu, pastor? Como pode dizer uma besteira destas?
- Sente-se, Felix. Você está em meu escritório.
Felix, já alvoroçado, sentou-se.
- Felix, você faz isso com todo mundo! Que sentido há em brigar com o garçon, com o segurança do banco ou com quem quer que lhe pergunte alguma coisa? Ninguém é culpado de você ter sido injustiçado, ou maltratado, ou agredido em algum momento do passado. Mas você, para não sofrer mais, para não apanhar mais, bate em todo mundo e agride a todo mundo. Você trata a todo mundo como eu ao meu cactus! Portanto, você também está fazendo uma loucura!
Felix não esperava essa resposta. Felix gostava muito de plantas e até cultivava um jardim em casa. Não podia entender como alguém fazia uma plantinha sofrer. E foi justamente por isso que caiu na armadilha do pastor: ele estava sendo cruel também, não com as plantinhas, mas com as pessoas.
- Pastor, eu já fui muito humilhado! O sargento que comandava a nossa companhia zombou de mim e todos riram, no quartel. Eu virei motivo de piadas. Quando saí do serviço militar, na porta da estação, não percebi que haviam colocado cascas de banana e me fizeram cair, e todos riram muito. Fui um palhaço para as esposas dos soldados e dos seus filhos. Fui humilhado. Fiquei sem dormir várias noites até que decidi que ninguém mais riria de mim.
- Felix, meu caro irmão. Ah, Felix! As outras pessoas não são culpadas! Nem todo mundo estava lá e nem todo mundo quer ferir a você! Maltratá-las por antecipação ou espetá-las com respostas ácidas não trará a sua salvação daquele fato do passado e nem lhe protegerá de novos fatos no futuro. As pessoas não podem pagar pelos erros que cometeram contra você. Mas gostaria de fazer um trato.
- Que trato, pastor?
- Se você orar agora, pedindo ao Senhor que lhe ajude a perdoar quem lhe ofendeu no passado, conforme Jesus nos ensina, e se você implorar a Deus para ajudá-lo a controlar-se e não descontar sua ira e vingança nos outros, então eu vou tirar as agulhas, os arames e a borracha do meu cactus, deixando-o livre para desenvolver-se, sem sofrimento. Que tal?
Felix estava vermelho e emocionado. Um misto de raiva, de ira, mas também de arrependimento e de dor.
Resolveu  aceitar o desafio.
- "Senhor, não tenho sido justo com as pessoas ao meu redor. Estou descontando nelas o que fizeram comigo no quartel. Elas não têm culpa, Senhor! Ajuda-me a tratá-las bem, e, acima disto, ajuda-me a perdoar os meus algozes do exército. Que eu consiga perdoá-los por completo. E também ajuda o pastor a parar com a insanidade de ferir a plantinha que não lhe fez nada... (nisto Felix chorou)... Em nome de Jesus, amém".
Após uns minutos recobrando-se, Felix ergueu-se e disse:
- Trato feito, pastor. Obrigado pelo conselho.
- Felix, poderia me fazer um favor?
- Diga, pastor!
- Leve esse cactus e cuide dele para mim. Sei que você tem jeito com isso e ele estará mais seguro com você.
Felix não titubeou. Pegou o cactus e imediatamente libertou-o das agulhas e do arame farpado. Saiu do escritório, tomou sua esposa, pegou o seu carro e foi para casa.
Não foi uma mudança imediata, mas dia após dia Felix recuperou a doçura, a elegância e a postura que tanto encantara a Maria. Na igreja tornou-se um companheiro e em toda parte onde ia passou a ser benquisto.
O cactus? Está lindo e até floriu. Ele não foi culpado pelos espinhos do pastor. Agora é bem tratado, tanto quanto são bem tratadas as pessoas ao redor de Felix. (que não se diga nada ao Felix, mas o pastor havia preparado aquele cactus para receber o Felix. Não mentira sobre ter sido presente da sua mãe, mas as agulhas tinham sido espetadas pouco antes da entrevista...)
Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem (Rm 12:21)
Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados; soltai, e soltar-vos-ão. (Lc 6:37)
O homem se alegra em responder bem, e quão boa é a palavra dita a seu tempo! (Pv 15:23)
Wagner Antonio de Araújo

28/09/2014

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