terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

memórias literárias - 848 - REI MORTO

REI
MORTO
 
848
 
Ele era querido por todos. Há 25 anos presidia a empresa. Contratara inúmeras pessoas necessitadas e dera-lhes um rumo na vida. Muitas tornaram-se prósperas e muito bem sucedidas em suas carreiras. Estendera a ação empresarial por vasta área geográfica, transformando a antes empresa local numa potência nacional. Foram muitos anos de trabalho, de luta, de esforços, de dedicação. Ele estava prestes a aposentar-se.
 
Pelos corredores da empresa começou a verificar um burburinho. As pessoas conversavam e, ao vê-lo chegar, afastavam-se com um sorriso invasivo. Ele não fazia idéia do que se tratava. Verificara também que os filhos do dono, homem que sempre lhe foi leal e que agora falecera, provocando grande comoção nos antigos funcionários, olhavam-no diferente. Nas reuniões operacionais ou com os acionistas eles praticamente eram monossilábicos diante das propostas e das diretrizes apresentadas ou explicadas.
 
No final do mês, enquanto preparava-se para mais uma viagem de campo, recebeu em seu escritório o diretor da área de vendas em domicílio. Este, bastante abatido, disse que dois dos filhos do falecido proprietário estavam no departamento refazendo a agenda de reuniões e reestabelecendo as prioridades da área. Perplexo, sem saber como explicar, ligou para um deles.
 
- Dr. Carlos, pode explicar-me o que ocorreu? É verdade a informação que recebi? Os senhores estavam no departamento refazendo agendas e diretrizes?
 
- Sim, é verdade.
 
- Mas, meu caro, o nosso conselho determinou que as diretrizes e as agendas daquela área fossem organizadas pelo seu atual titular. Por que a mudança?
 
- Caro Boanerges (esse era o nome do nosso velho presidente), aqui nesta empresa nós cuidamos de tudo. Fique na sua!
 
Desligou o telefone. Sentiu o chão sumir diante de seus pés. A empresa consolidada e desenvolvida por ele agora contava com o desejo de aposentá-lo e tirá-lo de cena.
 
Foi só uma questão de tempo. Os filhos do dono deram-lhe a demissão. Indenizaram-no segundo a lei mandava, mas nem um centavo a mais, nem um cartão de "muito obrigado".
 
Não houve festa. Não houve despedida. Aliás, no dia em que juntava os seus pertences para sair, ouviu a música que os donos cantavam com os funcionários: "hoje é um novo dia de um novo tempo". Ele entendeu que era página virada.
 
Encontramo-lo há alguns dias andando pela rua do centro. A dignidade não o abandonou. Seu nome foi apagado das placas, dos relatórios, da vaga do estacionamento e do site da empresa. Cinco pessoas foram contratadas em seu lugar. Outro dia desejou visitar o pátio da firma, mas o guarda que fazia a vigilância e dava acesso à empresa não lhe permitiu entrar. "São as regras, Boanerges. Se cuide, hein?"
 
Rei morto, rei posto.
 
Wagner Antonio de Araújo
 
obs: alguém perguntou: e acabou? Não tem nenhuma aplicação, nenhuma lição a tirar, nenhum conselho a dar?
 
Bem, o texto retrata a vida como ela é. Infelizmente o que escrevi é a realidade de inúmeras pessoas que já contribuíram imensamente em suas áreas de atuação e que foram completamente esquecidas e arrancadas dos anais de memória da própria sociedade construída.
 
Infelizmente isso acontece também nas igrejas cristãs, nos ministérios pastorais, nas congregações que crescem.
 
Dura realidade.
 

Que Deus nos dê forças para encará-la.

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