quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

memórias literárias - 849 - ONDE ESTAMOS?

ONDE
ESTAMOS?
 
849
 
Laboratório de exames clínicos. Estou com a minha esposa, prestes a ter bebê. Há exames urgentes a fazer. Estamos com pouco tempo, pois há o rodízio de automóveis e é o nosso dia. Além disso a nossa filha Rute sairá dentro de duas horas da escolinha. Somos encaminhados para uma sala cheia de gente. Eles aguardam pelo exame.
 
Olho para as pessoas. Há meia dúzia de crianças, umas quinze mulheres, uns dez homens. Uma tevê ligada num programa de auditório do canal mais popular do país, com as futilidades e vulgaridades típicas. Mas ninguém assiste. Estão todos com um celular na mão. As crianças olham e apertam o ecrã nos joguinhos carregados. Os adultos assistem vídeos. As mulheres conversam pelos aplicativos. Outros digitam avidamente textos com quem está do outro lado. Alguns estão com fones de ouvido, fora da realidade.
 
Fora da realidade estavam quase todos. Estavam de corpo presente e de mente ausente. Uma porção de zumbis alienados, presentes num lugar e com as mentes a vagar no mundo etéreo virtual. Eu pensei algumas coisas.
 
1) Ninguém se olha. As pessoas sentam-se nas cadeiras e sequer pedem licença a quem está ao lado. Para elas os outros inexistem. Acredito que nem elas existem para si, pois o mundo está dentro desta caixinha alucinante. Se pudessem mergulhariam na tela do celular.
 
2) Ninguém se escuta. Eles ouvem o que sai do celular. Eles ouvem os fones de ouvidos. Eles não ouvem a voz do próximo, eles não se conversam. Eles sequer atentam para quem está do lado. Por isso o som da senha chamada é gritante, para chamar a atenção dos zumbis que aguardam os exames.
 
3) Ninguém se ama. As pessoas não estão sensíveis às necessidades do próximo ou as dores alheias. Para elas o que importa é suprirem a necessidade própria e sairem para as suas vidas sem sentido. Parafraseando Vandré, elas aprendem a força da comunicação virtual e vivem isoladas e sem razão em seus cérebros alienados.
 
4) Não há mais alternativa. O mundo está exatamente como já previa aquele filme "1984" onde o "Grande Irmão" (Big Brother) estava a vigiar a todos até nos banheiros. Só há uma diferença: lá era obrigatório; aqui é voluntário. E as próprias pessoas iniciam os seus filhos nos celulares. Um menino que não contava mais de dois anos ficou mais de quinze minutos fissurado num celular que os pais lhe deram enquanto navegavam pelo google! O que poderia acontecer para mudar isso? Uma explosão termonuclear que colocasse fim a todas as conexões eletrônicas e encerrasse todo contato virtual? Isso é improvável. A tendência é piorar muito, a ponto de ninguém ser capaz de sobreviver neste mundo sem uma caixinha maldita destas, que será a chave para se comprar ou vender, para ser alguém ou ser inexistente. Um 666 real que cresce a passos largos.
 
Sinto saudades do meu tempo de criança. Sinto saudades das pessoas. Sinto saudades dos telefonemas dos amigos. Sinto saudades das cartas pelo correio. Sinto saudades dos almoços e cafés com parentes. Sinto saudades de viajar para encontrar a quem se ama.
 
Tempos solitários...
 
Wagner Antonio de Araújo

 

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