republicação
A VELHA MÁQUINADE ESCREVER
251
No meio dos livros
antigos encontro a minha pasta velha. Uma pasta de cartolina, amarela, com
elásticos. Seu plástico está todo riscado, esfolado, seu papelão está amassado,
rasgado, fruto dos muitos anos de serviços que ela me
prestou.
Ali eu encontro
sermões manuscritos, do meu tempo de presidente de mocidade, tempo de
seminarista tempos de Igreja Batista em Sumarezinho, Igreja Batista de Vila
Mirante e Igreja Batista de Vila Souza, todas na capital paulista.
Velhos tempos!
Sermões simples, feitos com canetas coloridas e grifados com giz de
cera. Eram escritos em folhas
de sulfite, dobradas ao meio, as quais eu levava em minha bíblia. A imaginação
viaja. Relembro velhos púlpitos que ousaram confiar num adolescente pregador.
"Sai da Caverna", "Defina-se diante de Deus", "Quente ou Frio?", "Levanta-te e
Anda", são alguns manuscritos já rasgados e amarelados pelo tempo. Quanta
saudade!
Continuo sondando o
conteúdo da minha relíquia. Encontro os meus sermões do início do pastorado,
numa época pré-informática, onde, senão usássemos a caneta, usávamos a máquina
de escrever. Alguém ainda se lembra dessa velharia? Meu pai tinha uma Remington
preta, antiga e quase centenária. Depois compramos uma portátil, e, por fim, a
minha Olivetti verde e portátil, que tão útil me foi!
Meus velhos sermões
datilografados! Eu escrevia os títulos primários e secundários com a fita
vermelha, e o restante com a tinta preta. Quando errava, ou furava o papel
tentando apagar ou passava o "branquinho", uma tinta branca corretiva, que nunca
era da mesma cor da folha usada. Lá estão os borrões, saudosos borrões,
escondendo o cuidado em levar ao púlpito o melhor que pudesse, ainda que o meu
melhor fosse tão limitado!
Para grifar partes do
texto, usava aquele famoso risco preto depois de escrever. Para transcrever um
texto bíblico usava aspas, pois não havia itálico. Para anotar ilustrações, a
deficiência de quem não soube colecioná-las: "falar agora a ilustração da
laranja" - "que laranja?", pergunto agora, 30 anos depois. A laranja já secou há
muito, e eu não me lembro do que falava! Por vezes o papel era fino demais, e eu
colava duas sulfites, procurando engrossá-lo mais, para não voar durante a
pregação. Certa feita fui buscá-lo na porta da igreja, no meio de uma pregação,
sob o riso simpático e condescendente dos presentes ao culto. Alguns sermões na
pasta estavam com cor de terra, oriunda de acampamentos de jovens e adolescentes
em que fui conferencista. Outros estavam com sinais de marca d'água, não feitos
por carimbos de ferro, mas por lágrimas derramadas ou gotas de suor durante a
pregação.
Ah, a minha velha
máquina de escrever! Parece que a inspiração era mais profunda quando nela eu
escrevia, parece que a responsabilidade de escrever sem errar, num equipamento
sem a tecla "DELETE", me dava uma felicidade maior, uma decisão mais firme de
fazer certo uma única vez. Hoje, mesmo nesta crônica, perdi o número de
"DELETEs" que já utilizei. Imaginem usar borracha, gilete ou branquinho tantas
vezes numa folha de papel...
A máquina de escrever
está aqui, no escritório, fechada na capa plástica há 7 anos. Nunca mais a
utilizei. Sua fita de tinta deve estar ressecada, nem sei se encontrarei "refil"
com facilidade, no mercado. Mas, como prova de outros tempos e testemunho de que
é possível vencer as dificuldades, cá está ela, inteira, funcionando, pronta
para tornar-se o "plano B" numa eventualidade. Ela me faz lembrar das origens do
ministério.
Voltar às origens é
algo que, de quando em vez, temos de fazer. Muitas vezes nos tornamos tão
amargos, tão diferentes, tão metidos à adulto, que perdemos as nossas
características de espírito e temperamento! É como quando encontramos velhos
amigos, amigos de outros tempos, que fazem cara feia ou tratam o outro com
desdém, pessoas que, antigamente, trepavam juntas em árvores para apanhar frutas
ou chutavam bola nos campinhos da periferia. Hoje se julgam muito cultas, muito
adultas, muito importantes. Acho que é por isso que alguns pastores, no afã de
justificarem tantas mudanças, gostam de trocar de nome, de denominação, de
sistemas. Estão enjoadas de serem tão diferentes do que eram! Pensam que agora
só lhes resta mudar de nome. Mas no inconsciente sonham com os dias do passado,
sonhos doces de um tempo que não volta mais!
Vem bem à calhar a
admoestação do Senhor, feita na epístola à Éfeso, em Apocalipse 2.5: "Lembra-te,
pois, donde caíste, e arrepende-te, e pratica as primeiras obras; e se não,
brevemente virei a ti, e removerei do seu lugar o teu candeeiro, se não te
arrependeres.", porque "abandonaste o teu primeiro amor" (Ap 2.4).
Acho que a minha
velha máquina de escrever me diz coisas, ela, que não tem boca, mas que fala tão
profundo! Ela me diz que devo ser tão dedicado ao ministério quanto o fui no
início. Ela me diz que devo fazer, dizer e escrever coisas tão relevantes, como
o fiz no princípio. Ela me diz que a humildade deve ser a marca da minha
autenticidade, porque o valor do meu trabalho não está no equipamento que uso,
mas naquilo que faço, como o foi com as coisas que nela eu escrevi, uma máquina
simples em papel medíocre, mas palavras que atravessaram décadas, não por terem
sido ditas por mim, mas por terem sido feitas sob a orientação de Deus e sob
forte desejo de fazer o melhor. Ela diz que a simplicidade é a coisa mais bela e
permanente. Já tive 3 computadores, não senti amor por nenhum, pois são máquinas
impessoais. Mas a minha velha máquina, simples, barata, limitada, está aí, como
membro do meu escritório e equipamento da minha vida.
Será que nós não
temos agido também como computadores? Será que não nos fizemos tão descartáveis
quanto eles, nos lugares onde trabalhamos, nas igrejas onde congregamos, entre
os amigos com quem convivemos? Será que não somos complexos demais? Será que não
temos uma casca de primeira e uma polpa vazia?
Você,
respeitável leitor, não teria uma máquina de escrever da qual se lembrar? Quem
sabe tenha sido muito mais simpático e cordial no passado, mas agora tem se
tornado um ser complicado, complexo, orgulhoso, cheio de detalhes e cerimônias,
sorrindo o sorriso amarelo da educação fria, sem perceber que há um coração e
uma alma dentro de si? Quem sabe não seria a hora de voltar a ser simples,
cordial, amigo, ter tempo para gastar com as pessoas que lhe são queridas?
Falando de pastores (eu sou um, sei bem onde os nossos calos apertam...)
muitos tornaram-se, em sua profissão, "profissionais", no sentido pejorativo da
palavra: são administradores, professores, pregadores, gestores, conselheiros,
etc. Contudo, não sabem amar. E quando forem embora de suas igrejas, não
deixarão saudades, porque ensinaram suas comunidades a ver no pastor um
"profissional", não um amigo, um pai, uma companhia imprescindível, um
companheiro. Há igrejas delegando ao departamento de recursos humanos de uma
empresa tercerizada a escolha de seu pastor: ele tem que preencher um "perfil
profissional". Foi-se o tempo em que tinha que preencher o coração da igreja e
ser a jóia do coração de Deus. Resultado: igrejas grandes (e outras pequeninas),
mas igrejas frias.
É hora de voltarmos
às máquinas de escrever. É hora de arrebentar pipocas, abrir uma tubaína e
chamar a família para um gostoso bate-papo. É hora de revalorizar o púlpito e
tudo o que se faz. É hora de cultivar as coisas antigas que abandonamos, coisas
boas, claro. É hora de trazermos as cores do passado de volta aos nossos
olhares. É hora de pegar a agenda velha de telefones e ligar para quem foi
importante para nós. É hora de rever as fotos que eternizaram momentos desde há
muito esquecidos, é tempo de agradecer a Deus por tantas experiências já
vividas. E trazê-las de volta, ainda que com roupagem nova, madura,
atual.
Fechando a minha
pasta amarela, amarelada e velha, fecho também um acordo diante de Deus e comigo
mesmo: preciso voltar "ao primeiro amor".
E
você?
Pr. Wagner Antonio de
Araújo
Igreja Batista Boas
Novas de Osasco, SP
10/04/2002
Nenhum comentário:
Postar um comentário