terça-feira, 30 de janeiro de 2018

memórias literárias - 603 - SÓ PARA MIM

SÓ PARA
MIM


 
 
603
 
O mundo tem perdido a sua pessoalidade. Tornamo-nos midiáticos.
 
As famílias deixaram a privacidade de seu convívio. Tudo hoje é exposto e transformado em terreno comum. As coisas que comemos, as palavras que dizemos, as roupas que usamos, as pessoas com quem conversamos, tudo transformou-se num grande espetáculo público. Longe disto está a Bíblia, quando afirmava: Jardim fechado és tu, minha irmã, esposa minha, manancial fechado, fonte selada. (Ct 4:12). O relacionamento afetivo entre duas pessoas era algo confidencial, privado, honrado, restrito ao casal e a Deus. Hoje as pessoas perderam o pejo e expõem a intimidade com ares de teatro (uma comédia bizarra onde a tragédia reina...). Os celulares, que muitas vezes fazem de tudo (menos ligações telefônicas...) tornaram-se câmeras foto-filmográficas, cujo conteúdo é erguido em depósitos virtuais e visto por multidões.
 
As pessoas não se telefonam mais! Elas mandam mensagens de texto, áudio e vídeo. Há alguns dias atrás um irmão disse-me: "eu não ouvia a voz de minha irmã há três anos, e moramos a 500 metros, trocamos mensagens de texto todo dia. Que emoção eu senti com a sua ligação!". Deixamos o contato pessoal e privado para a arena do espetáculo dos relacionamentos grupais, típicos de gente que não possui mais a vocação para uma amizade pessoal. Se pedimos oração, uma multidão diz que vai orar; mas quantos oram e, ainda mais, quantos nos procurarão pessoalmente para saber como estamos? O povo fica satisfeito com a celebração midiática, mas, será que realmente há alguma celebração verdadeira, não uma farisaica demonstração de espiritualidade e emoção?
 
"Quero falar com você".
 
"Mande-me um zap, um áudio, um vídeo, um texto. Depois eu vejo."
 
As pessoas perderam o contato umas com as outras. E soa como absurdo e aberração da natureza o descobrimento de alguém que não possui um facebook ou um whatsapp! Olhamo-lo com ares de compaixão e espanto, buscando alguma explicação plausível para tamanha profanação do culto ântropo-sociológico. "Como ele sobrevive? Como está vivo? Como ele se relaciona sem as mídias ou sem um grupo de whatsapp?" Dos palácios granfinos até a mais modesta das vilas, o mundo deixou de viver e tornou-se telespectador. Sentamo-nos na praça e vemos dezenas de seres escravizados ao ecrâ. Tomamos um ônibus e lá estão os escravos da mídia. No avião as pessoas sequer percebem quem está ao lado, tendo os olhos fitos nas mídias e os ouvidos entupidos com fones. Não faz muito tempo um otorrinolaringologista atendeu a um adolescente que reclamava de má audição. O médico descobriu a causa: um fone de ouvido esquecido no buraco da orelha...
 
Deus também tornou-se virtual. Há tanta mensagem bíblica, tanto áudio e vídeo religioso, que eu, um produtor de textos e mídias cristãs, sinto-me desconfortável em continuar a escrever ou em publicar os sermões que prego. Tornamo-nos "carne de vaca a preço de banana", excessivos e expostos a nenhum auditório. Ao dar início ao culto a minha fala é: "se for gravar, pode usar; se for dialogar com gente de fora, pode desligar; estamos em culto ao Deus Presente; respeitemo-Lo!" Sei de igrejas cujos auditórios estão pela metade, com cinquenta por cento dos presentes mergulhados em outros conteúdos.
 
Talvez já nem saibamos mais buscar a Deus! Somos tão dependentes de mídia, de youtubers, de orientações de terceiros, que precisamos de um tutorial de oração, um outro de quebrantamento; mais um outro de discernimento. Alguém precisa criar um canal sobre "como descobri Deus" e criar um bando de seguidores. A Bíblia deixou de ser a Voz e tornou-se ferramenta de humor, de pesquisa, de lucro. Seguimos a nós mesmos e Deus tornou-se supérfluo. Gosto do texto bíblico que fala sobre a experiência dos três apóstolos ante a transfiguração de Jesus: E, tendo olhado em redor, ninguém mais viram, senão só Jesus com eles. (Mc 9:8).  Só Jesus. Como falta isso em nós!
 
SÓ PARA MIM. Que saudades de amigos que me mostravam algo de si, algo pessoal e importante (uma foto de família, um documento particular, uma conversa privada, uma carta escrita à mão)! Quanta falta da visita particular, do amigo íntimo com quem se pode chorar, sorrir, discutir ou orar e interagir de forma real!
 
Às vezes o meu whatsapp toca. Fico feliz em ver aquela pessoa me acionar. "Lembrou-se de mim!"  Mas logo a alegria vira decepção ao ver que só me mandou um dedão como positivo, uma carinha de alegria ou encaminhou algo que alguém escreveu para todos (ou para ninguém). Eu já disse preferir mil vezes um "olá" pessoal do que um longo texto reenviado e plastificado. Creio que está chegando o dia de retornarmos ao SÓ PARA MIM.
 
Será que nos esquecemos da autêntica comunhão? Jesus falou sobre isso e chamou-a de AMOR. Falou que tal dom/virtude é capaz de doar a própria vida em favor de outrem. Falou em visita ao enfermo, em roupa para o nu, em comida para o faminto, em solidariedade para o encarcerado. E falou no singular! E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes. (Mt 25:40). Ele não falou de amor por atacado; para Ele sempre foi no varejo. Se fosse no atacado o seu rebanho seria uma boiada, contada a grosso. Mas para Ele não somos bois; somos ovelhas! A este o porteiro abre, e as ovelhas ouvem a sua voz, e chama pelo nome às suas ovelhas, e as traz para fora. (Jo 10:3). Ele tem encontros privados com a nossa alma, revelando-Se e transformando-nos. Ele é um Deus único e PESSOAL. E quer que os Seus sejam também crentes PESSOAIS, com relações pessoais e verdadeiras. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também. (Jo 13:15)
 
Finalizando:
 
Só para mim, não para todo mundo,
É o que um amigo me concede.
Um privilégio pessoal e mui profundo,
Que dá vigor e a alma aquece!
 
Só para mim e para os que comigo convivem!
Só para si, como prova de minha consideração.
Só para mim, grato pelos que assim me distinguem,
Só para si, minha estima e verdadeira gratidão!
 
Wagner Antonio de Araújo

30/01/2018

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