sexta-feira, 11 de setembro de 2020

memórias literárias - 921 - TRATAMENTO MÉDICO

TRATAMENTO
MÉDICO
 
921
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No. 53
 
- Sou eu!
 
- Pois não, senhor. O doutor lhe espera. Consultório 5.
 
Ele segue, bate à porta, recebe permissão e entra.
 
O médico, de óculos, ergue-se, cumprimenta-o e lhe dirige a palavra.
 
- Pois não. Em que posso ajudá-lo?
 
- Doutor, eu sou crente.
 
- Há quanto tempo?
 
- Mais ou menos quinze anos.
 
- Certo. E como foi criado?
 
- Fui criado numa boa igreja. Ouvia bons sermões e o povo era sério. Havia boa comunhão e muito respeito.
 
- Correto. E qual é o problema?
 
- Sabe, doutor, de uns tempos para cá eu deixei de sentir a presença de Deus.
 
- E desde quando isso ocorre?
 
- Mais ou menos cinco anos.
 
- Sabe me dizer o que aconteceu à época? Como estava a sua igreja? O que aconteceu com você?
 
- A igreja passou por um processo difícil de sucessão pastoral. Houve bastante conflito. Vários amigos saíram. Depois chegou um pastor muito legal, moderno, abriu a igreja para um monte de coisas que antes não podiam acontecer.
 
- Que coisas?
 
- Bom, ele deixou a gente beber socialmente, não considerou pecado uma ou outra transa entre namorados, tatuou-se e sugeriu que o pessoal ficasse livre para fazer o que quisesse com o corpo. Eu fiz essa aqui no braço. Olha só...
 
- Certo. E o que aconteceu com a igreja?
 
- Ah, doutor. Ela cresceu. Nunca entrou tanta gente, tanto dinheiro e nunca a igreja ficou tão conhecida como hoje. Até elegemos dois vereadores, gente boa, quer dizer, eram, até a eleição...
 
- Correto. E então, se tudo está indo tão bem, por que sente esse problema?
 
- Sabe, doutor, tudo é permitido e a gente faz o que gosta, vive do jeito que quer. Mas, estranhamente, algo aconteceu na igreja. O pessoal não se trata mais como antigamente.
 
- Como assim?
 
- Antes a gente era irmão de verdade, se considerava. Também orávamos uns pelos outros e tínhamos temor de pecar. A gente se vigiava, se ajudava. Costumávamos evangelizar, distribuir bíblias, essas coisas.
 
- E agora?
 
- Agora a gente faz parte de uma empresa. A igreja está na mídia. A gente tem seguidores, aparece na TV, tem um monte de funcionários, o culto tem efeitos fantásticos: fumaça, estrobos, luzes coloridas e espelhadas, som da hora, grupo musical qualificado.
 
- E não está bom?
 
- Pra falar a verdade, não.
 
- O que falta?
 
- Falta relevância.
 
- Como assim?
 
- A gente perdeu o fundamento, o parâmetro. Antes a gente estava na igreja porque ia buscar a face de Deus, andar em seus caminhos e se ajudar mutuamente, levando amor ao próximo e a mensagem de salvação para outros.
 
- E agora?
 
- A gente vive pela igreja, pela empresa, pela entidade. A gente se trata como peças de uma organização, não como família. E buscar a Deus é coisa de cena, de foco, de câmera. Acredita que tem um ponto na orelha do pessoal de palco onde o diretor diz pra dar uma chorada enquanto a mensagem é emotiva ou na hora de uma oração?
 
- Hum... - o médico abaixou a cabeça, pensou, e em seguida falou:
 
- Quer fazer um tratamento?
 
- Sim, doutor. Eu preciso de uma solução. Estou ficando depressivo. Teria aí um remédio tarja preta pra me arrumar? Talvez um sonífero ou um estimulante emocional? Eu não queria ficar desse jeito. Perdeu a graça.
 
O médico levantou-se, lavou as mãos na pia do consultório, foi até a estante, tirou três caixas fechadas e trouxe-as à mesa.
 
- Se você quiser sarar terá que fazer esse tratamento tríplice. Essa rotina tem que ser tripla e terá que ser feita por pelo menos trinta dias sem interrupção. Estaria disposto?
 
- Claro, doutor. Estou disposto sim.
 
- Vamos ao primeiro medicamento.
 
Ele abriu cuidadosamente a caixa. Havia um papel bonito que embrulhava um objeto. Retirou as proteções, abriu o pacote. Retirou um volume preto, com bordas douradas. Era uma Bíblia Sagrada.
 
- Este remédio será fundamental para o seu tratamento. Trata-se da Bíblia, a Palavra de Deus. Aqui você vai encontrar a voz que se calou no meio de sua igreja. Aqui você vai ouvir quem há tempos silenciou enquanto você ouvia a voz dos homens. Aqui você escutará novamente a mansa e suave voz do Bom Pastor. Terá que lê-la com vagar, com atenção, com reverência e com disciplina. Três vezes ao dia. Antes de sair para o trabalho, após o almoço e antes de deitar-se. Estaria disposto?
 
- Sim, doutor. Estaria sim. Estou farto de ouvir tanta auto-ajuda, tanta opinião, tanta coisa dita apenas para atrair gente, conseguir ofertas e não espantar a juventude. Eu topo.
 
- Ok, se fizer isso terá um terço do problema resolvido. Mas terá que adicionar a isso o outro remédio.
 
Ele abriu a outra caixa. Também estava com um embrulho cuidadoso. Mas tinha outro formato. Abriu-a, desdobrou-a e esticou-a. Era uma esteira.
 
- O que é isso, doutor?
 
- Isto aqui é uma esteira. Você irá usá-la para orar. Essa prática você não tem há muito tempo. O que tem feito é falar de si para si próprio, algo que não tem valor nenhum. Para falar com Deus você vai se ajoelhar e, se possível, se prostrar. Você não vai falar de si para si, mas de si para Deus, que lhe ouvirá. Você não disse que há muito não escuta a voz dEle?
 
- Sim!
 
- Certamente o diálogo foi interrompido faz tempo. Agora você terá que procurá-lo novamente. Foi assim que Moisés foi orientado no dia em que Deus falou com ele. Enquanto você estiver ereto e cheio de si não encontrará o Deus a quem deve orar.
 
- Mas a esteira é indispensável, doutor?
 
- Não. Ela apenas lhe diz que você deve se dobrar. Jesus disse para fechar a porta do seu quarto e orar ao Pai que está nos céus. Em Apocalipse o povo vencedor se prostrava diante do Rei dos Reis, do Cordeiro de Deus. Se você cair aos pés de Cristo começará bem. E poderá abrir seu coração sem reservas. Está disposto?
 
- Estou sim, doutor. Quantas vezes por dia?
 
- No mínimo três. O número não é o importante, mas a atitude e a firmeza. Se possível ore pela manhã, ore à tarde e ore à noite. De si para Deus, Ele é real e Se deixa encontrar quando O buscamos de todo o nosso coração.
 
- Está bem, doutor. E qual é o terceiro remédio?
 
O médico abriu o terceiro pacote. Era um hinário antigo, tradicional, hinos clássicos, escritos em lágrimas e de joelhos pelos heróis da fé nas gerações passadas. Hinos antigamente cantados e atualmente descartados.
 
- Aqui está o terceiro remédio: louve ao Senhor. Cante. Cante baixinho, faça as afirmações destas poesias centenárias. Confesse a sua fé, a sua confiança, o seu amor por Cristo.
 
- Mas e os nossos sucessos nas plataformas digitais? As nossas músicas de trabalho, os nossos shows?
 
- Se você quiser sarar terá que usar estas aqui. Com o tempo perceberá a diferença. Quem come um bolo feito pela confeitaria real aqui da cidade sabe a diferença do bolo feito pela indústria que vende toneladas, dizendo que é a mesma coisa. Assim também estas canções. Quem canta as canções escritas por quem pagava o preço, por quem tinha comunhão com Deus, terá também o mesmo gosto e o mesmo prazer espiritual que eles tiveram.
 
O rapaz folheou o hinário e foi destacando vários que eles cantavam quando a vida na igreja era melhor.
 
- Você fará este tratamento por trinta dias e retornará aqui. Veremos o resultado.
 
Soubemos do resultado há alguns dias. O rapaz é outro. Sua casa é outra. Sua confiança é outra. O brilho em seu olhar é outro. Soubemos que várias pessoas de sua igreja foram influenciadas e agora há um forte movimento de santidade naquela igreja mundana.
 
Quem sabe nem tudo está perdido ainda?
 

Wagner Antonio de Araújo

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