terça-feira, 22 de setembro de 2020

memórias literárias - 923 - RELEVÂNCIA

 RELEVÂNCIA

 
923
 
Todo mundo deseja ser considerado por alguém. Todos nós precisamos ter senso de importância, de sermos especiais para alguém. Com esta pandemia monstruosa muitos se sentem sem valor algum.
 
Olham para a sua vida profissional e vêem a falência do seu negócio, o desemprego sem perspectiva de mudança, a idade que impede a contratação, as limitações da pandemia. Consultam o banco e não observam saldo. Não têm perspectiva alguma. Então sentem-se irrelevantes. Dependem da esposa, do marido, dos filhos ou dos amigos para não se tornarem indigentes. Que tristeza!
 
Olham para a sua vida familiar e encontram a absoluta solidão. Confinados num apartamento de três cômodos ou numa casa grande e vazia, convivem com uma ou duas pessoas apenas. Isto quando não estão absolutamente sozinhos. Não vêem mais os filhos, os netos, os parentes, os amigos. Não há mais encontros familiares, nem lazer, nem passeios, nem viagens. Tudo o que têm é um contato etéreo com um vídeo, um áudio, um telefonema e inúmeras futilidades no whatsapp ou no facebook. Quando pensam que alguém deles se lembrou percebem que foi mais um compartilhamento de algo interessante e completamente inútil. Anseiam por um telefonema e este nunca chega. Esperam uma mensagem pessoal e esta nunca é escrita. Sonham com a lembrança de si no coração de alguém a quem amam e isto jamais acontece. Quando não, estão com sérios problemas de convivência com quem mora junto, um clima altamente insuportável. E então desesperam-se de viver.
 
Olham para os seus afazeres pessoais em casa e pensam: há tanto por fazer, mas não sei nem por onde começar. E, se fizer, para quê será feito? Organizar armários? Cadastrar bibliotecas? Arrumar o guarda-roupa? Tirar o mato do vaso? Limpar a vidraça? Fazer backup do computador? Tudo é assaz importante. Mas qual a real importância? Serei mais feliz? Produzirei mais alegria? As coisas importantes ficam por fazer: pias repletas de louças, roupas sujas e sem lavagem, mato no jardim, chão grudento da cozinha, banheiros fétidos, carros empoeirados. As coisas simplesmente travam...
 
Olham para a sua vida sentimental e contemplam os sonhos transformados em quimeras. O casamento marcado foi cancelado e a noiva já dá sinais de exaustão nessa espera sem fim. A festa, a viagem de lua-de-mel, as bodas de prata ou de ouro, a formatura na faculdade, a inauguração de uma propriedade, a entrega de um projeto, tudo tornou-se praticamente nulo. O amor que deveria ser desfrutado em toda a sua plenitude tornou-se virtual e sem calor. Não há mais beleza em nada, não há mais palavras a serem ditas. Tudo ficou desgastado.
 
Olham para a sua vida espiritual e nada vêem senão promessas e bravatas. As inúmeras mensagens bíblicas ou devocionais que recebem batem sempre na mesma tecla e não tocam música alguma. Todos dizem muito sem dizer praticamente nada. Há uma jactância posicional da fé, incompatível com a triste realidade vazia de uma comunhão interrompida e quebrada. Igrejas inventam suas ceias à distância, sem observar os ensinos do Novo Testamento. Cada um faz a sua própria ceia, na hora que desejam, quantas vezes querem e com os elementos que escolhem. Convidam quem querem, pois tudo não passa de algo meramente subjetivo e "a la carte", ao gosto do freguês, ops, do crente. As igrejas passam semanas e meses nessas intermináveis e intragáveis "lives", um misto de sons esganiçados, de frases de efeito, de tentativa de normalidade eclesiástica e de trechos de outros cultos selecionados. Mas a alma do crente geme e chora, se de fato é do rebanho. Rebanhos não estão mais nos apriscos, mas esparramados nos lares, perdidos em seus mundos de isolamento.
 
Pastores gemem e choram também. Seus ministérios exigem que se faça alguma coisa, pois, caso contrário as finanças sucumbirão e os crentes debandarão. Eles precisam estar na mídia, senão a outra igreja tomará o horário nobre dos crentes sem atividades. E eles não sabem mais o que fazer com tantas restrições. Têm visitas a fazer, mas não podem. Têm aconselhamentos a dar, mas têm que usar a mídia. Têm cursos, encontros, atividades planejadas, mas estão todas suspensas. Quantos eventos foram cancelados e quanto prejuízo promocional aconteceu! Acabam sabendo de gente que já debandou da igreja e que está se alimentando com tal mídia, com tais obreiros e tais igrejas. Ele se sente só e abandonado, pois tem tanto que dar e tão pouco a receber!
 
Mas estes ainda estão melhores do que os pastores sem ministério. A pandemia os pegou em trânsito, quando deixavam uma igreja e aguardavam a oportunidade em outra. Eles deixaram de receber convites. Eles tornaram-se ignorados, absolutamente descartados de qualquer processo, pois tudo parou. Os formandos, aqueles que esperavam o início, não têm mais certeza de nada, pois também não pregam e não servem em parte alguma. E os pastores aposentados? Tornaram-se peças de museu, lembrados apenas pela memória dos que já envelheceram. Convites para pregar? Pregar aonde? E se as igrejas abrem, o espaço não será deles. Nem dos pastores sem ministério. Os titulares precisam garantir as suas posições!
 
Nós temos sede de relevância, de sermos importantes na vida de alguém. Experimente deixar de mandar vídeos, áudios ou textos em mídias sociais e comunicadores virtuais. Experimente silenciar. O resultado será o esquecimento de quase todos. Ninguém está, de fato, se importando com ninguém. As pessoas publicam porque querem ser importantes, querem ser lembradas, querem estar "no mercado". Elas assistem algo de que gostam, escutam uma mensagem que lhes é agradável ou lêem uma notícia que julgam importante e mandam. Mas assim: cruamente, sem um olá, sem um bom dia pessoal. O máximo que mandam é um incômodo "emoji" essas figuras que fingem representar algo, mas que não dizem nada. Quase tudo o que circula no whatsapp náo é pessoal, é tudoum "recorta-e-cola". Silencie nas mídias, não mande mais nada no whataspp e verá que ninguém mais lhe procurará, com raras exceções. Estamos assim, num mundo com grandes volumes de material de comunicação, mas vazio de relações pessoais. Temos um panelão a ferver no fogo, mas não há comida, só há água e nada mais. Apenas movimento sem conteúdo. A panela ferve sempre, a comunicação enche os nossos celulares; mas é quase tudo descartável, impessoal.
 
Temos sede de relevância, de sermos importantes para alguém, de sermos realmente considerados, de sermos lembrados. Precisamos, porém, descobrir para quem vale a pena ser importante. Ouso dizer que temos que encontrar 3 pessoas para as quais ter relevância. Alistarei as três, sem com isso estabelecer hierarquia de importância. As três são importantes.
 
A primeira: RELEVÂNCIA PARA NÓS MESMOS. Se eu me vestir para os outros não encontrarei a quem agradar ou não agradarei a todos. Se eu usar um perfume terei que gostar dele. Se eu olhar a paisagem pela minha janela deverei celebrá-la comigo mesmo. Fomos iludidos pelo excesso de mídia, julgando que temos que fotografar até um prato de macarrão para mostrar para todo mundo. Nós nos tornamos incapazes de fazer alguma coisa buscando agradar a nós mesmos. Temos necessidade de agradar aos outros, de sermos aceitos, quando, na verdade deveríamos fazer as coisas pelo prazer de fazê-las conosco mesmo. Somos as únicas pessoas que realmente estão presentes 24 horas por dia e somos as que menos importância damos a nós mesmos! Tenhamos auto-satisfação! Vejamos a paisagem e partilhemos conosco! Ouçamos uma música e celebremos dentro de nós! Apreciemos uma comida e fiquemos felizes por ter acesso a ela e saúde para digeri-la! O Senhor disse que deveríamos amar ao próximo como "a nós mesmos". Que venhamos a nos amar também!
 
A segunda: RELEVÂNCIA PARA DEUS. Ele nos ama! Ele nos amou tanto que deu o Seu Filho unigênito para por nós morrer e pagar o preço do nosso pecado. Ele nos salvou em Cristo para uma nova vida, uma vida de prioridade, uma vida de relevância. Ele deve ocupar a primazia de nossas atenções. Eu disse acima que devemos nos agradar, nos amar. E a coisa que mais agrada a quem conhece a Deus é agradá-Lo e fazer a Sua vontade! Nós nos vestimos para Deus, nos alimentamos para a glória de Deus, fazemos as coisas para agradar a Deus! Se Deus não for a prioridade de nossa vida não haverá felicidade, pois estaremos sempre adorando ídolos (ou nos idolatrando) e tirando o lugar do Senhor de nossos corações. Ele nos vê mesmo quando não postamos alguma coisa. Ele conhece tudo mesmo quando não tiramos fotos dos eventos! Ele está presente mesmo quando o celular está desligado! Ficamos desesperados quando o telemóvel está com a bateria por acabar, mas nem percebemos que estamos com a nossa bateria de comunhão praticamente a desligar, sem carga, sem conexão, sem esperança. Deus precisa receber a nossa principal atenção.
 
A terceira: RELEVÂNCIA PARA QUEM ESTÁ PRÓXIMO DE NÓS. Há pessoas que estão sempre próximas, mas que, muitas vezes são ignoradas. Conheci uma família que chorou amargamente a morte de uma empregada. Ela atravessara 26 anos trabalhando naquela casa, vira os filhos crescerem e se casarem. Mas nunca fora convidada para uma festa, uma celebração, uma viagem. Ela era sempre a funcionária, nada mais. Porém, quando a tristeza batia, quando a doença chegava ou a necessidade imperava era a ela que iam buscar para receberem ajuda e socorro. Ela morreu sem nunca ter sido valorizada. Eles mandaram fazer um lindo túmulo, mas foi tarde demais. Seria preferível um enterro simples e um reconhecimento em vida! Às vezes buscamos a felicidade tão longe e ela está do nosso lado! Tentamos enxergar as coisas com um binóculo, quando o que importa está a um palmo! Um pai, uma mãe, um irmão, um tio, um cunhado, uma sogra, um vizinho, um colega, um amigo, um desconhecido. Precisamos valorizar quem está próximo. Não adianta mandar dinheiro para a caridade e deixar os seus à míngua! Não adianta pensar nos confins da Terra e deixar a nossa Jerusalém sem evangelho!
 
Relevância. Este é o segredo. Eu preciso ser relevante. Para Deus. Para mim. Para quem está perto de mim. Isto realmente importa. Mesmo que todos me esqueçam. Mesmo que eu não seja mais importante para ninguém. Mesmo que seja apenas eu só. "Mas não estou só, porque o Pai está comigo." (Jo 16:32)
 
Wagner Antonio de Araújo

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