segunda-feira, 2 de março de 2020

memórias literárias - 852 - DAR OU RECEBER

DAR
OU
RECEBER
 
852
 
"Todos da Ásia me abandonaram" - Paulo, Apóstolo, ao final de sua carreira, conforme 2 Tm 1.15.
 
Classificamos as pessoas em dois grandes grupos: as que nos dão algo e as que recebem algo de nos.
 
Ao grupo dos que nos dão algo consideramos importante e precioso, pois nos supre. São pessoas que nos dão atenção, carinho, mensagens, afeto, algumas vezes ajuda financeira ou moral, pessoas que nos indicam para alguma coisa, gente que nos acrescenta valores, importância, fama, oportunidades. São pessoas que fazemos questão de saudar, de felicitar, de destacar, de dar presentes às vezes caros. Queremos marcar presença para que saibam que estamos presentes e atentos. Talvez o motivo não seja a importância que elas têm para nós, mas sim as coisas que por nós fazem. Queremos manter isso de forma continuada. Nós garantimos acesso ao palácio real.
 
Já ao outro grupo, o que depende de nós, onde nós exercemos o papel acima descrito, consideramos muito desigual. Há os que nos procuram enquanto temos o suprimento farto para que com eles repartamos a prosperidade. Quando estamos empregados, quando estamos bem estabelecidos, quando temos um papel preponderante na sociedade em que vivemos, somos procurados, contatados, solicitados, bajulados, valorizados. Às vezes corremos o risco de nos sentirmos importantes na vida dessas pessoas. Julgamos que elas de fato nos dão valor. E, não raras vezes, acabamos por abrir o coração e aceitar o afeto e a amizade como sincera e honesta. Mas ai de nós se não ocuparmos os lugares de destaque que ocupamos! Tornamo-nos reféns dos sentimentos desenvolvidos. Os que dantes julgávamos amigos, próximos, solícitos e preciosos simplesmente nos abandonam, desaparecem, esquecem-se de nossa importância!
 
Exemplos há aos montes. Pais que criaram os filhos, que se dedicaram incansavelmente ao seu sustento, cuidados, estudos, suprimentos, são lançados à marginalidade dos corações ingratos daqueles que cresceram. Tais pais tornam-se um estorvo a cada ano que passa, principalmente por impedirem o uso pelos filhos dos poucos bens que irão deixar. Alguns são lançados num asilo para viverem bem longe e morrerem bem rapidamente.
 
Diretores e gerentes que eram bajulados por seus funcionários, que recebiam cartões de felicitações ou convites para celebrações sociais, ao deixarem os seus postos, seja por aposentadoria ou por demissão, são esquecidos por aqueles que antes lhes davam tanta importância. Não são raras as vezes que os antigos clientes e funcionários bloqueiam os seus números de contato e não aceitam ser procurados pelos que não exercem mais as importantes funções. Estes ex-importantes entram para o rol dos recém-inexistentes.
 
Professores que ajudaram na formação de alunos, que os ensinaram a pensar, a avaliar, a julgar, a construir, a seguir em frente, são riscados das agendas e dificilmente lembrados pelos alunos vencedores. Talvez o sejam por algum canal de televisão que celebre a vitória política de algum candidato, não por valorizarem o mestre, mas para contar alguma história comovente e assim tornarem o político vencedor em alguém humano e bondoso, pura fábula ilusória da mídia. A maioria dos professores são relegados ao mais profundo esquecimento. E a nova geração de professores já entra no mercado de trabalho protegida contra esse tipo de relação: eles não se apegam mais aos alunos, uma vez que não querem sofrer a dor do esquecimento.
 
Por fim, o ministério pastoral também traz consigo dores intensas. Um pastor que exerce o seu ministério numa igreja considerada importante, que tenha um palco visível, que ocupe uma posição de destaque, é bajulado, procurado, afagado, amado, presenteado, tem o seu telefone a tocar o tempo todo, recebe as visitas mais inesperadas, homenagens sem conta. Basta que ele não ocupe mais a função, que se aposente, que se exonere ou que vá para outras searas, que todo o carinho antes recebido desaparece. Ele torna-se uma grande página virada, um grande objeto de museu, uma informação perdida nos bancos de dados históricos de uma instituição. Seu telefone se aquieta, sua casa não é mais local de encontros e visitas, seus aniversários não são mais lembrados, exceto pelos mortos sistemas automáticos de mídia, que, despidos de coração, festejam a tudo sem nada sentir.
 
O que escrevo é a realidade. Muitos pensam mas nada dizem. Tornei-me figura carimbada porque Deus deu-me uma garganta corajosa, mesmo que na ponta dos dedos (quando não tenho a chance de dizer publicamente; coragem nunca me faltou). Já vi pastores chorarem o abandono. Já vi missionários padecerem necessidades depois de se aposentarem. Já vi antigos príncipes do púlpito terem os seus nomes apagados dos anais da história de igrejas locais. Já vi e já chorei com estes colegas. Eu nunca desprezei alguém que não ocupava mais o pedestal de sua função, de sua profissão, de seu meio de atividade. Para mim as pessoas não valem pelo poder exercido ou o cargo que têm, mas por serem quem são. Pastores não são importantes porque podem me dar algo, recomendar-me ou trazer algum benefício, mas por serem pessoas especiais, cujas vidas inspiram e cujas experiências demonstram que andam com Deus. Sempre primei por valorizar alguém independentemente do que pudesse me dar. As pessoas não valem por serem meras doadoras, mas por serem quem são! Eu, já com 32 anos de pastorado, também conheço bem a dor do esquecimento e do telefone silencioso depois de algum ministério; conheço bem a dor de não ser mais importante como parecia ser enquanto no exercício de uma liderança. Conheço a ingratidão por parte de quem se beneficiou de nossa generosidade.
 
Eu me pergunto: eu sou do tipo que dou ou do tipo que recebe? Eu sou do tipo que valoriza apenas a quem me dá algo ou valorizo para sempre quem conquistou um espaço em meu coração? Quanto aos idosos eu os desprezo, considerando-os gente que já ocupou espaço demais neste mundo, ou honro-os até ao fim, dando a eles o valor devido por serem quem são? Quanto aos pastores eu os considero apenas enquanto ocupam pastorados importantes, cujas decisões podem me beneficiar de uma forma ou de outra ou os valorizo para sempre, independente do que possam me dar?
 
Dar ou receber. Às vezes damos. Às vezes recebemos.
 
E às vezes somos esquecidos. Que não sejamos ingratos e que não nos esqueçamos de ninguém. Aliás, que sejamos presentes fisicamente, pessoalmente, e não apenas no simulacro das comunicações virtuais.
 
Ofereço estas palavras aos que, como eu, são humanos e experimentam a mesma humanidade.
 
E termino, dizendo: Deus JAMAIS se esquecerá dos Seus. Ele não se esquecerá dos esquecidos. Basta que Ele se lembre. Até de um copo d'água fria, ofertado com amor e em nome de Jesus. Que Ele seja glorificado!
 

Wagner Antonio de Araújo.

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