quinta-feira, 3 de novembro de 2016

memórias literárias - 373 - CADEIRA VELHA


CADEIRA

VELHA


373
Assentado na cadeira velha o Seu João medita. Está com oitenta anos. Veste uma blusa verde-escura, de lã, deixando para fora apenas seus punhos magros e brancos, pele avermelhada de frio. As mãos estão enrugadas pela idade. Veste uma calça remendada, lembrança da vida que um dia teve. Mora no asilo. Enquanto segura o encosto da cadeira contempla o salão onde se encontra. Vários idosos, uns mastigando a dentadura, outros assistindo a tv pequena no alto, com um programa de banalidades. No ar um cheiro de local pouco higiênico. Cheiro de remédio, urina e água sanitária formam um aroma peculiar, com o qual o Seu João ainda não se acostumou. Uma enfermeira ajuda uma senhora a beber um copo de leite. Um outro acompanha o Juvenal, de noventa anos, que precisa correr ao banheiro.
Seu João medita, agarrando firmemente nos braços da cadeira velha. Olha o chão, de caquinhos vermelhos como revestimento e encerados a cada quinze dias. Relembra a vida que já teve e o que lhe restou nesta altura. Ele está neste lugar há seis meses. Ainda se lembra de como chegou ali. O seu terceiro filho mantinha um quartinho ao fundo, pequenino, para que o pai morasse. Tinha um banheiro, uma cama, uma cadeira e uma mesinha. Era pequeno, mas confortável. Contudo, percebia a discussão da esposa, que queria o espaço para o seu filho mais velho. Era desconfortável manter dois meninos no mesmo quarto na idade da adolescência. Seu João percebia que o filho se esforçava para não transparecer a dificuldade. Então o Seu João disse que preferia um asilo, pois teria algumas pessoas da mesma idade com quem conversar e que não se sentiria abandonado. À principio o filho não aceitava; com o tempo, porém, acabou cedendo e conduziu o seu pai para a instituição. Mas o visitava sempre que podia. Claro, o Seu João fingiu querer o asilo. Mas, bem lá no fundo do coração, sentia que os últimos laços de família se rompiam e que dali somente a morte o esperava. Era o fim de uma vida.
Vida feliz, diga-se de passagem. Oitenta anos! Estudara tanto quanto possível e formara-se protético. Casara-se com uma linda moça de seu bairro, Maria. Ah, foram felizes! Quando o primeiro filho chegou, o Laurinho, quanta felicidade! O Pedro foi o segundo, trouxe companhia ao Laurinho. E, por último, Oséias, o caçula. Fez o que pôde pelos filhos. Trabalhou duro para fornecer o alimento, o vestuário, os estudos e o lazer necessários. A cada dois anos tirava férias e levava a família para uma semana na praia ou nas montanhas. Eram momentos preciosos e desfrutou-os um a um. Difícil foi a época da adolescência. Os meninos brigavam muito e tinham que ser disciplinados. Mas, ao final, tudo se resolvia. Quando o Laurinho casou-se, foi um misto de alegria e tristeza (síndrome do ninho vazio). Logo os outros dois também se casaram. Maria, ah, pobre Maria, adoeceu aos sessenta. Assim que o Seu João aposentou-se (e o salário pelo qual recolheu o imposto foi caindo com o tempo) dedicou-se quase que integralmente a cuidar de Maria. Ela durou cinco anos e partiu, levando o seu coração consigo. Teve que vender a casa popular para pagar as custas do tratamento. O seu filho mais novo o acolheu no quartinho do fundo. Até que o Seu João resolveu deixar o filho viver a própria vida e cuidar de seus filhos. Agora estava ali, solitário, no asilo do bairro.
O vento da tarde lhe traz tosse. A enfermeira lhe dá uma colher de mel. Ele agradece. Recolhe-se no seu quarto, compartilhado com outros três idosos. Seus pertences resumem-se a um armário de duas portas e quatro gavetas. Ali estão suas meias, lenços, cuecas, pijamas, três camisas, três calças, duas blusas e um cachecol. Nos seus artigos de higiene um polvilho granado, dois desodorantes, uma lâmina de barbear e um pente. Ele tinha um cortador de unhas, mas enferrujou. Numa caixa de bombom guarda as fotografias antigas de um tempo que não volta mais. Esparrama tudo na cama e, com os olhos marejados de lágrimas contempla as fotos da esposa, dos filhos pequeninos, da formatura na escola, dos avós, da oficina onde fazia as dentaduras, do jardim de casa, do ônibus que o levava até o trabalho. Tem guardada a aliança de Maria, que tirou do seu dedo anelar antes que a sepultassem.
Seu João está triste. Os amigos de sua idade já se foram. Os demais, residentes, estão ocupados com as suas próprias tragédias; não têm tempo ou vontade de partilhar nada. Só há uma novidade: os Gideões Internacionais deixaram um Novo Testamento com letras grandes para cada idoso. E ele está gostando de lê-lo. Além de espairecer, lhe dá alguma esperança. Será que há um Céu além da morte? Será que ele verá Maria novamente? Será que Deus perdoaria os seus pecados? No sábado terá visitas. E um grupo de jovens avisou que virá tocar músicas cristãs. É o evento pelo qual aguarda, além da morte, que um dia chegará sem avisar.
* * *
Há muitos idosos como o Seu João. Eles estão nos asilos e nas instituições que cuidam de pessoas da terceira idade. Muitos estão lá por abandono; outros, por opção, por amor, pois não quiseram pesar na vida de seus filhos. Uns adaptam-se e tentam sobreviver com alguma alegria; outros vivem de reminiscências. Mas todos aguardam o dia em que a morte os ceifará. E talvez ninguém perceba.
O Seu João ainda tem a possibilidade de encontrar um sentido para esta vida temporária e passageira: ele pode encontrar a vida eterna em Jesus Cristo. Bendito seja Deus por aqueles que tiveram o cuidado de presentear um novo testamento para os idosos. E glorificado seja Deus por aqueles que atenderam ao coração e à voz divina para visitar quem tanta solidão sente. Mas há muitos outros Joões que aguardam uma atitude nossa, uma ação nossa, que lhes dê um pouco de dignidade, de companhia e de esperança. Esperança que pode lhes salvar a alma, pois somente Cristo é a Esperança! E, se temos Jesus no coração, temos também a responsabilidade de compartilhar dEle com quem tanto precisa. E os idosos não podem ser esquecidos.
O Seu João escancara a realidade da vida à nossa frente: se Cristo não voltar logo iremos envelhecer. O que temos hoje em termos de casa, estabilidade, recursos, companhia, irá mudar radicalmente em vinte, trinta ou quarenta anos, e só Deus sabe se teremos um lar acolhedor ou optaremos por buscar um asilo para ajudar a família a não nos ver como estorvo e peso. A velhice existe e cresce dia após dia no corpo de cada um de nós. É preciso saber envelhecer, mas, principalmente, é preciso ter certeza de que há um porvir após a vida. E a Bíblia nos fala de um céu, real, verdadeiro, disponível a todo aquele que crê em Cristo. Uma vida eterna, onde o nosso corpo será perfeito, nem jovem e nem velho, que não adoecerá, que não envelhecerá, onde Deus enxugará dos olhos toda a lágrima, e onde jamais precisaremos dizer adeus! Cristo afirmou: "Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se não fosse assim eu vo-lo teria dito. Pois vou preparar-vos lugar".
Que tal descobrir o Seu João em sua família? Que tal visitá-lo? Que tal acolhê-lo? Que tal amenizar a sua dor?
Que tal unir-se aos cristãos de sua igreja e dar atenção aos idosos em uma instituição próxima, tornando a vida deles um pouco menos penosa? Que tal compartilhar com eles a salvação que há em Cristo Jesus? Afinal, se eles conhecerem a Jesus, terão vida, e vida em abundância, mesmo sendo idosos!
Que tal orar agora e pedir para que Deus use a sua vida?
Que Deus nos abençoe e abençoe os nossos Joões!
Wagner Antonio de Araújo

03/11/2016

Nenhum comentário:

Postar um comentário

memórias literárias - 1477 - CHORA, Ó RAQUEL...

  CHORA, Ó RAQUEL...   1477   Quando o Senhor Jesus Cristo fez-Se homem, nascendo do ventre de Maria, Herodes o Grande desejou matá-Lo...