sexta-feira, 22 de setembro de 2017

memórias literárias - 529 - A VITÓRIA NA DURA PROVA

A VITÓRIA
NA DURA
PROVA


 
529
 
 
Cresce o menino. Torna-se um adolescente. É saudável, bonito, perfeito. É a alegria da tenda da família, dos serviçais, de toda a propriedade de Abraão. Ao vê-lo pela manhã, no café ou a correr pelos campos, Abraão se lembra daquele dia em que Deus o conduziu para fora, à luz das estrelas, fazendo-o vislumbrar uma realidade gritante: há muitas estrelas. E, na visão, faz-lhe promessa sem precedentes: sua descendência será numerosa assim!
 
Então sua mente passeia pelas campinas e pelos vales onde habitava. Enxerga toda a Canaã povoada pelos seus netos, bisnetos, tataranetos. Vê em cada pai de família um pedaço de seu próprio rosto; vê em cada casal um centro de adoração verdadeira ao Deus Eterno, que o amou, que lhe fez promessas e as cumpriu. Certamente que não estaria aqui para ver a sua prole multiplicar-se, mas o Deus que nunca mente o faz contemplar o início, na pequena vida de Isaque!
 
Tudo caminhava muito bem, até que, numa madrugada, trevas espessas cobriram o céu de estrelas de sua tranquilidade.  Deus lhe dá uma ordem, uma ordem contrária a tudo o que imaginou, contrária a tudo o que construira como idéia de futuro: "sacrifica o teu filho no lugar em que eu te mostrarei". Abraão tateava no escuro da revelação; não imaginava como seria realmente Deus. Suas palavras eram poucas e jamais haviam falado de sacrifício humano. Além disto, uma promessa estava em curso. Como harmonizar tal pedido?
 
Abraão era obediente. Porém era humano, era falho. Falhara muitas vezes. Ainda que não houvesse Lei para dizer o que era certo e o que não era, o bom senso e a consciência certamente lhe apontaram os seus pecados. Apresentara sua esposa como irmã nos lugares onde ia acampar-se, buscando salvar-se de algum assassinato. Atendera igualmente a esposa num pedido esdrúxulo: ter filhos através de sua escrava Agar. Teve-o, Ismael,  e Deus iria abençoá-lo, mas não era de fato o filho prometido por Deus. Abraão poderia ter evitado tais coisas, seguido pelo caminho do Criador, que fizera apenas homem e mulher e não homem e mulheres. Abraão não era perfeito. Mas em todo o seu desconhecimento de Deus e em toda a sua vivência de obediência, não recusaria tal estranha ordem. Saiu com dois servos e o menino. Seguiu para a montanha.
 
Ao chegar ao local designado, deixou os servos e seguiu com o garoto para o monte do sacrifício. Com a lenha às costas, Isaque foi ao lado do pai, que levava o facão e a tocha de fogo. Na cabeça do pequeno adolescente faltava alguma coisa. Diversas vezes vira o seu pai sacrificar ao Criador. Mas desta vez não havia cordeiro, cabrito ou qualquer animal. "Onde está o sacrifício, papai?" "Deus proverá, meu filho!". Para o menino o assunto terminado. Para o pai, o assunto o entristecia sobremodo.
 
Só percebe a dimensão do sofrimento de Abraão quem teve a graça de ser pai. Minha filha Rute, agora há pouco, sujou-se de iogurte. Esparramou-o pela boca, pela roupa, lambeu-se, fez uma festa.  Depois ela puxa a nossa mão para brincarmos, para fazermos sombra diante do sol, para conversarmos, para corrermos. Pensar em ver minha filha morta? Não há pesadelo maior! E o meu Josué? Bebê tamanho-família, graúdo, lindo, sorridente, alegre, cheio de vitalidade, prestes a engatinhar. Desde que aqui chegou trouxe-nos luz e felicidade. Imaginar o meu Josué num caixãozinho? Não, não há desespero ou sofrimento maior em vida! E Abraão certamente pensava nisto, enquanto amarrava o seu adolescente no altar de lenha. Dentro de minutos o garoto seria um churrasco sacrificial. Poria fim às visões de uma prole numerosa, de netos, bisnetos e tataranetos a brincarem no terreiro, de uma população imensa, herdeira deste pai. Certamente a sua fé não se abalara, pois antes de sair para a montanha disse aos servos: "eu e o menino voltaremos"; mas ele não imaginava como. O autor de Hebreus é quem nos dá a resposta: "Deus seria capaz de ressuscitá-lo"(Hb 11.19). Portanto, teria Isaque, mas Isaque teria que morrer.
 
Ah, Abraão! Deus não é um monstro! Deus não quer sacrifício humano! Nem do louco Jefté, muitos anos depois, que praticou uma aberração em nome de Deus, sacrificando sua filha (Juízes 11.31). Entendeu errado o que era o anátema, a dedicação irremissível dos condenados do Senhor (os povos que seriam conquistados em guerra). Abraão, obediente e resignado, estende a mão ao cutelo e prepara o golpe fatal. Antes que o matasse a Voz brada do céu: "Pare, Abraão! Não faças mal ao rapaz! Agora sei que me amas!" E Abraão passou na dura prova! Fora aprovado com louvor!
 
As nossas provas não são as mesmas. Deus não fará de nós uma grande nação. Deus não requererá o sacrifício de nosso filho, de nossa filha. Deus não fez promessas específicas. É um erro aplicá-las a nós: "serás uma grande nação", "a tua descendência darei esta terra". Promessas específicas para pessoas específicas não se aplicam à generalidade dos servos do Senhor.
 
Porém, o princípio que gerou a provação de Abraão aplica-se a nós, servos do Deus de Abraão. "No mundo tereis provações". Não temos um Isaque a sacrificar, mas temos um ministério, uma carreira, uma saúde, um patrimônio, uma agenda, um dinheiro, uma situação, uma programação de vida que pode ser a qualquer momento reinvindicada pelo Senhor, que nos perguntará: "amas-me mais do que isto?". Sim. "Pedro, amas-me mais do que estes?"; "Quem amar mais a qualquer coisa não é digno de mim".
 
A nossa herança está no Céu, não aqui. Tudo o que aqui temos é temporário, é terreno, é provisório. Nada aqui é nosso, nem os nossos filhos, nem o nosso emprego, nem o nosso patrimônio. Somos mordomos daquilo que Deus nos emprestou. Se Ele não for o principal, toda a nossa vida ruirá com a perda do objeto de nossa ambição. Às vezes é um pai, uma mãe, uma esposa, um filho, um neto, um amigo. Ao perdê-los tornamo-nos vazios, renegando os dias que continuam a vir. Outros perdem a carreira brilhante, o campeonato, a promoção, o emprego, a saúde, as oportunidades. Waldo de Los Rios foi um dos maiores maestros contemporâneos, mas pôs fim à vida quando perdeu um concurso. Quando algo é mais importante do que Deus em nossas vidas, já perdemos o nosso Isaque.
 
Abraão venceu a prova. Tornou-se nosso exemplo. Ele é o pai da fé. Somos seus filhos. Devemos abraçar o seu legado. Se Deus nos requisitar aquilo que é mais importante, não titubeemos em entregar-Lhe, uma vez que a Sua promessa é fiel: "Dou-lhes a vida eterna e nunca hão de perecer, e ninguém os arrebatará das minhas mãos." (João 10.28)
 
 
Isto nos basta. Benditas sejam as provas da nossa fé.
 
Wagner Antonio de Araújo
22/09/2017

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