sábado, 14 de novembro de 2015

memórias literárias - 281 - FATOS MARCANTES - 4

 FATOS MARCANTES 4
281

 

Este é o último artigo sobre minha viagem ao litoral paulista no início deste ano. Falei sobre o jovem endemoninhado, a cultura brasileira, a estufa eclesiástica, e hoje falarei sobre algo sobremodo marcante.

Faltavam dois dias para eu voltar. O dinheiro estava curto. Porém, com algumas economias era possível suprir as necessidades. Decidi jantar no centro da cidade. Porém, como já era noite avançada, os restaurantes já estavam fechados, ficando à disposição apenas padarias, pastelarias e lanchonetes. Bem, como a fome era muito forte e já acostumado a ter refeições em lanchonetes decidi jantar na padaria. Uma vez mais não alteraria nada.

Entrei numa bonita padaria. Não era apenas bonita, mas moderna e bem montada. Inspirava elogios. Muitos salgadinhos e doces estavam à disposição e havia muita higiêne no preparo dos lanches. Solicitei ao balconista meu pedido e coloquei-me em prontidão de guerra (a fome era terrível). Aproveitei para observar os companheiros de espera. Havia muito movimento de turistas que, na sua grande maioria, estavam à procura de garrafas de água mineral para suprirem as suas geladeiras. O calor estava muito forte. Nisto senti alguém me tocar por trás e logo associei a sensação à realidade de estar sendo roubado por algum trombadinha. Enganei-me. Tratava-se de um senhor, um mendigo, homem simples, que me pedia um refrigerante para matar a sede. Resolvi dar-lhe um dinheiro, mas ele, parecendo até ofendido, protestou e pediu-me apenas um refrigerante. Paguei-lhe um salgado também.
 
Enquanto isso um garotinho sentou-se ao meu lado, pediu ao balconista um pedaço de pizza e um copo de leite. Fiquei muito apreensivo e imaginei-me vítima de um golpe. Enganei-me de novo. O menino era filho de uma mãe solteira, sem teto e sem comida, que vagava constantemente pelo centro da cidade. O dono da padaria, condoendo-se da desgraça do menino, e afeiçoando-se à ele, resolveu dar-lhe roupas, comida e banho. Já faziam alguns meses que este processo vinha se desenrolando e soube que atualmente ele tentava convencer a mãe a dar-lhe o menino para adoção. Porém a mãe preferia vê-lo tornar-se um marginal do que dar-lhe a oportunidade que não teve. Lamentável.
 
Bem, nesse momento o homem a quem paguei o lanche estava em lágrimas, e me disse que o que eu havia procurado naquela cidade finalmente havia encontrado e que Deus estava reservando muita alegria à minha família. Depois sumiu. Saiu da padaria rumo a algum lugar, talvez lugar algum, ou quem sabe o céu, se fosse um anjo.

Duas considerações importantes: quem era esse homem? Um fruto da desigualdade social num país de duas classes? um mal-sucedido pai de família, expulso de casa ou que a abandonou devido aos problemas? Um aventureiro peregrino? Não importa. A palavra de Deus nos diz que devemos ser “hospitaleiros, pois muitos, sem saber, acolheram anjos” (Hb 13.1) Diz-nos também que devemos suprir as necessidades do próximo, que pode ser até mesmo um inimigo (Lc 10.25-37).
 
Por que ele me disse aquelas palavras? Mera retórica de gratidão? Mensagem angelical? Só Deus sabe. Quanto a segunda situação, digno de honra é o dono da padaria: repartir o que tem com os que não têm! Mesmo sabendo que o menino nada daria em troca. Que lição para nós! Tiago diz que “Se dissermos: ide e fartai-vos, e não dermos o necessário, que proveito haverá nisso?” (Tg 2.15-17). Muitos de nós exigimos que as pessoas a serem ajudadas expressem a fé cristã para poderem receber nosso benefício! Quanta pobreza de fé! Jesus afirmou categoricamente: “Vinde, benditos de meu Pai, para o Reino que vos está preparado desde a fundação do mundo, pois tive fome e me destes de comer... e me destes de beber... e me vestistes... e me visitastes... e fostes ver-me” (Mt 25.34-35).
 
Ao invés de discutirmos qual a importância das obras para a fé cristã deveríamos arregaçar as mangas e agir mais em prol do próximo, pois nisso se desenvolve a fé cristã: “Amareis ao Senhor vosso Deus de toda a vossa alma, de todas as vossas forças e de todo o entendimento, e ao próximo como a vós mesmos” (Mt 22.37-40). Ademais, o que exterioriza um verdadeiro discípulo de Jesus é o amor com o qual devemos amar uns aos outros (Jo 13.35). Talvez eu não veja nunca mais o mendigo, o menino ou o dono da padaria. Porém os minutos em que nossos caminhos se encontraram foram suficientes para imprimirem forte influência de vida. Será que os outros poderão dizer o mesmo de nós?...
 
 
Pr. Wagner Antonio de Araújo
 
(Extraído do boletim número 4, ano I, do Ministério Nova Geração, Igreja Batista em Vila Souza, São Paulo, SP, 08/04/1990)
Observação: Agora, enviando este antigo texto do início do meu ministério pastoral, fico a indagar: o que será que aconteceu com ess menino? Já deve ter os seus 20 anos. E o rapaz da padaria? Será que aposentou-se?
 
E o velho? Confesso que o considero um anjo que se disfarçou, como tantos assim o fazem.
 

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