domingo, 14 de junho de 2020

memórias literárias - 891 - TROCA INFELIZ

TROCA
INFELIZ
 
891
 
Um velório. Um pai no caixão. Flores o cobrem. Pessoas choram. Três filhos, dois rapazes e uma menina. Ninguém chora como eles. Cada um tem uma carta manuscrita. Foram escritas pelo falecido, que as deixou nas mãos de um tio. Pediu para entregá-las ao pé do caixão.
 
Assim dizia a primeira:
 
"Carlos, meu filho, eu não tinha instagram para comunicar-me com você. Por isso escrevi com a minha caneta. Eu sinto orgulho do homem que você se tornou. Honesto, trabalhador, estudioso, foi uma honra ter sido o seu pai. Mas quero alertar-lhe: não viva num mundo virtual. Pode ser que sinta saudade de quem já partiu e esse alguém não terá como comunicar-se com você. Seja abençoado, filho querido."
 
A segunda tinha o seguinte recado:
 
"Jussara, querida filha, você saiu-se igual a sua mãe: linda, inteligente, brilhante. Quantas vezes eu quis vê-la bem de perto, falar com você, sentir o quanto você cresceu. Mas eu não tinha whatsapp para me comunicar e nem facebook para ver o seu rosto bem de perto. Contentava-me com a sua passagem pelo corredor de casa ao sair para a faculdade. Espero que se lembre daqueles que são de carne e osso, como eu fui, e que dependa menos de redes sociais para amar e ser amada. Um beijo, minha princesa."
 
E a última dizia:
 
"Airton, você é o mais velho. Também é o mais forte, mais vigoroso, mais ousado. Eu sempre admirei a sua força de vontade, a sua valentia, a sua coragem. Pena que não tinha tempo para mim. As horas de intervalo entre o trabalho e a faculdade, os finais de semana, estavam ocupadas com jogos virtuais, com as turmas que se encontravam nas lives e nos chats com câmera. Como eu não tinha celular não pude fazer parte daqueles que obtinham a sua atenção. Seja feliz, meu filho, mas se lembre de quem existe fora da sua mídia. Pode ser que descubra muito tarde que sinais eletrônicos não duram para sempre e que as pessoas reais estão do lado de fora. Deus te abençoe".
 
Esses filhos estavam inconsoláveis. A viúva, pobre mulher, não sabia se chorava pelo marido morto ou pelos filhos desesperados.
 
Quando a hora de fechar o caixão chegou os órfãos de pai depositaram seus aparelhos celulares telemóveis dentro do caixão, todos sobre o peito do pai. Deixaram-nos ligados com uma frase:
 
"Perdoe-me, papai..."
 
Tarde demais para aquele pai ver a mensagem. Tarde demais para aqueles filhos que trocaram o real pelo virtual.
 
Mas pode ser cedo ainda para quem me lê, caso esteja transformando o mundo virtual na única verdade de sua vida, esquecendo-se das relações humanas e afetivas necessárias para a prática do verdadeiro amor e da nossa humanidade. Quem se comunica por celular dentro da própria casa experimentará a maior solidão interior no dia em que não tiver mais a oportunidade do encontro pessoal com quem estava ao lado.
 
Que não troquemos o real pelo virtual. Que não nos esqueçamos que nada supre uma relação autêntica presencial. Na pandemia esses equipamentos são uma muleta necessária. Mas, quando terminar a praga, que amemos, que abracemos, que invistamos tempo com pessoas reais, que nos sintamos humanos, que sejamos cristãos e que ninguém morra sem sentir o afeto dos seus.
 
A todos o meu cordial abraço.
 

Wagner Antonio de Araújo.

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