quinta-feira, 19 de setembro de 2013

memórias literárias - 122 - O MORTO FALOU

122-
O MORTO
FALOU
 
ERA manhã de sábado. O corpo do pastor estava no caixão. Sua família querida estava ao redor. Vários membros da igreja também. E amigos de longe chegavam a todo instante. Vieram prestar solidariedade ao velho obreiro aposentado. Aposentado? Apenas do pastorado integral da igreja, porque na prática continuara a trabalhar: pregava, escrevia, dava entrevistas, visitava velhas ovelhas, traduzia livros etc. Continuava membro da igreja que fundara e pastoreara por 50 anos, mas deixara o pastorado aos cuidados de um seminarista, logo consagrado ao ministério.
 
Muitas palavras bonitas, muitas lágrimas, gente de toda classe social acotovelava-se junto à família, aos pés do defunto. Nisto chega o pastor da igreja. Sempre com pressa, sempre correndo, abraçou a viúva e os filhos e foi solicitando a atenção de todos.
 
Um parêntese necessário: o pastor tolerava o velho obreiro, mas não nutria por ele qualquer gratidão. Pastor jovem, inexperiente, ávido de sucesso, sentia que o velho ancião lhe fazia muita sombra. Enfurecia-se quando ouvia comparações por parte dos membros: "no tempo do pastor fulano..", "o pastor fulano não fazia assim", "que saudade do pastor fulano..." Ele se incomodava tanto com isso que tratou de tirar da igreja todo e qualquer sinal do ministério anterior: reformou o templo, as salas, tirou a placa, colocou outra e até trocou o nome da igreja, seguindo a moda ridícula dessas igrejas modernas: "igreja batista luz no meio das trevas". (se há luz não há trevas; talvez as trevas estivessem na cabeça do obreiro sem noção...). Suportava um salário vitalício de gratidão que a igreja votara em caráter irrevogável, tanto a ele quanto à viúva, se viúva ficasse. Cuidados pastorais? Nenhum! Sequer telefonava para o pastor. Era obrigado a ceder-lhe o púlpito duas ou três vezes por ano, por força de alguns velhos da diretoria; cortesia que evitava brigas.
 
"Meus irmãos, agradecidos somos pela presença de todos nessa hora tão especial, quando homenageamos o nosso amado, querido e inesquecível Pastor Asdrúbal Santos. Que falta ele nos faz! Sou-lhe profundamente grato por tantos momentos especiais que passamos juntos, eu e minha família. Estou emocionadíssimo e vou sentir falta dele".
 
O povo chorava, se derretia.
 
"Já mandei para O Jornal Batista o seu necrológio, em nome de nossa igreja, para que nunca, jamais nos esqueçamos de quem tanto bem nos fez! Cantemos o hino EU AVISTO UMA TERRA FELIZ".
 
Os filhos mordiam a língua, de bravos e indignados. Tiveram que sair da igreja por força de tantas coisas que viam, feitas unicamente para destruir o que o pai havia feito. A viúva, pobrezinha, só tinha sentimentos pela profunda ausência que o esposo lhe causava. Chorava, dizia palavras de amor  bem baixinho, acariciava o seu rosto. Foi quando, subitamente, lembrou-se da cartinha que mantinha em sua bolsa. Seu esposo lhe entregara quando sentia que a partida estava próxima. Recomendou-lhe categoricamente que não lesse, mas que entregasse ao pastor na hora do culto. Ela, afoita, foi pegar a carta. Acabou derrubando tudo da bolsa (bolsas femininas são verdadeiras estantes multi-uso; 3 pessoas tiveram que ajudar a recolher os inúmeros objetos caídos). Achada a carta, entregou-a ao pastor, recomendando sua pública leitura.
 
O pastor, terminado o hino, após enxugar as lágrimas, entregou a carta para que a secretária lesse. O povo todo aguardou a leitura.
 
E assim a secretária leu o texto com emoção e, sem dúvidas, com perplexidade.
 
"AMIGOS, SE ESTIVEREM OUVINDO ESTA LEITURA, É PORQUE EU NÃO ESTOU MAIS ENTRE VOCÊS. EU MORRI. ESTOU COM O MEU SENHOR JESUS, QUE ME SALVOU, REMIU E LEVOU. VOCÊS ESTÃO DIANTE DO MEU CORPO, QUE DORMIRÁ ATÉ QUE O SENHOR JESUS RETORNE COMIGO E COM TODOS OS SALVOS. ENTÃO RESSUSCITAREI. OH, ALELUIA!
 
ALGUNS DE VOCÊS ERAM MEUS AMIGOS. DESTACO A MINHA AMADA ESPOSA, PARA QUEM VIVI DURANTE TODOS ESSES ANOS DE FELIZ MATRIMÔNIO. TAMBÉM O JOSÉ, O SIMÃO, O PEDRO E O TIAGO, MEUS FILHOS AMADOS, AMIGOS DO CORAÇÃO, A QUEM TIVE A HONRA DE EVANGELIZAR, BATIZAR, CASAR E VER SUA PROLE TÃO BONITA E EDUCADA.
 
AGRADEÇO AOS MEMBROS DE NOSSA IGREJA, QUE FORAM MINHAS OVELHAS DURANTE O MEU MINISTÉRIO. VOCÊS SÃO PRECIOSOS PARA MIM. AGRADEÇO AOS AMIGOS, AOS IRMÃOS DE OUTRAS IGREJAS, AOS VIZINHOS, AOS QUE COMIGO MANTINHAM PRECIOSA AMIZADE. OBRIGADO! OBRIGADO!
 
MAS ALGUNS QUE ESTÃO AQUI NEM DEVERIAM TER VINDO, ALIÁS, GOSTARIA INCLUSIVE QUE FOSSEM EMBORA
 
Nisto todos levantaram o rosto perplexos, inclusive o pastor celebrante. Mas a secretária continuou.
 
HÁ ALGUNS AQUI QUE NÃO ME DERAM UM INSTANTE DE ATENÇÃO DEPOIS QUE EU ENVELHECI, PESSOAS QUE NÃO FIZERAM CASO DE MIM. GOSTAVAM DE MIM ENQUANTO PASTOR E ENQUANTO NA ATIVA; TRATARAM-ME COMO UM SAPATO VELHO, ESQUECENDO-SE QUE EU AINDA EXISTIA. AMIGOS, OBRIGADO POR VIREM, MAS ISSO NÃO REMEDIARÁ O DESPREZO QUE ME DERAM. PORTANTO, QUERO QUE SAIBAM QUE A MAIOR HOMENAGEM QUE PODERIAM TER DADO A MIM ERA EM VIDA, NÃO AGORA QUE MORRI.
 
TAMBÉM QUERO DIZER ALGO A VOCÊ, PASTOR CAMARGO CLEMENTE (o pastor da igreja). QUERO AGRADECER POR VOCÊ TER DADO PROSSEGUIMENTO AO MEU MINISTÉRIO, PASTOREADO AS OVELHAS QUE PASTOREEI E MANTIDO FIRME A BANDEIRA DA FÉ.
 
Nisso o pastor aliviou-se, dando um sorriso de protocolo. Mas por pouco tempo, pois a frase não havia terminado.
 
ALIÁS, PASTOR, EU AGRADEÇO POR TER VINDO AO MEU VELÓRIO, SUA ÚNICA VISITA PARA MIM NOS ÚLTIMOS 4 ANOS. O IRMÃO SENTIA TANTO CIÚME DE MIM QUE BUSCAVA OPORTUNIDADES PARA FUGIR DE CUMPRIMENTAR-ME OU DE RECONHECER-ME NO MEIO DA IGREJA. LAMENTO MUITO POR SEU COMPORTAMENTO. EU JAMAIS DESEJARIA FAZER SOMBRA PARA O SEU TRABALHO. SE ALGUMA SOMBRA HOUVE FOI DE SUA PRÓPRIA INCOMPETÊNCIA E DESAMOR, NÃO DO TRABALHO QUE EXERCI AO LONGO DOS ANOS. AGORA SINTA-SE À VONTADE PARA BANIR A MINHA MEMÓRIA DOS ANAIS DA IGREJA. EU JÁ NÃO SOU MAIS MEMBRO DA CONGREGAÇÃO QUE FUNDEI; ESTOU NA IGREJA TRIUNFANTE E O MEU SENHOR JÁ TEM TUDO ANOTADO NOS LIVROS DELE. MAS LEMBRE-SE, PASTOR: UM DIA VOCÊ TAMBÉM FICARÁ VELHO E TERÁ QUE PASSAR PELO QUE PASSEI. E SENTIRÁ NA PELE TODO O DESPREZO DE UM JOVEM OBREIRO AO SERVO QUE ENVELHECEU. NÃO FAÇA ISSO COM OUTROS. QUE DEUS LHE AJUDE A AMADURECER...
 
nisso o pastor saiu da cerimônia enfurecido. A leitura continuou.
 
COMO EU SEI QUE O PASTOR NÃO SUPORTARIA A VERDADE DITA, JÁ HAVIA INCUMBIDO O MEU IRMÃO DO ENCERRAMENTO DA CERIMÔNIA. ELE DARÁ SEQUÊNCIA AO CULTO. OBRIGADO, IRMÃOS, PELA PRESENÇA. QUE DEUS MUITO LHES ABENÇOE. E NÃO SE ESQUEÇAM: PASTORES IDOSOS TAMBÉM SÃO GENTE, TAMBÉM SÃO RIQUEZAS, TAMBÉM SÃO CARENTES DO AMOR EM VIDA. NÃO SE ESQUEÇAM DE SEUS VELHINHOS.
 
E assim foi o seu culto fúnebre e sepultamento. Até hoje a viúva não recebeu um telefonema do pastor. Mas não importa: Deus cuidou dela. E em breve ela irá ao encontro de Jesus e verá na glória o seu amado, remido como ela, no Céu de luz e de paz.
 
 
...........
 
Isto é apenas uma ficção. Não conheço qualquer pastor que tenha deixado uma carta assim. Mas o mau trato que velhos obreiros recebem, ah, esse não é ficção. Seria bom que nos lembrássemos dos velhos pastores, esquecidos pelas congregações.
 
Que tal telefonar para um deles agora e dizer o quanto são importantes em sua vida?
 
Wagner Antonio de Araújo

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

memórias literárias - 1477 - CHORA, Ó RAQUEL...

  CHORA, Ó RAQUEL...   1477   Quando o Senhor Jesus Cristo fez-Se homem, nascendo do ventre de Maria, Herodes o Grande desejou matá-Lo...