122-
O MORTO
FALOU
ERA manhã de sábado. O
corpo do pastor estava no caixão. Sua família querida estava ao redor. Vários
membros da igreja também. E amigos de longe chegavam a todo instante. Vieram
prestar solidariedade ao velho obreiro aposentado. Aposentado? Apenas do
pastorado integral da igreja, porque na prática continuara a trabalhar: pregava,
escrevia, dava entrevistas, visitava velhas ovelhas, traduzia livros etc.
Continuava membro da igreja que fundara e pastoreara por 50 anos, mas deixara o
pastorado aos cuidados de um seminarista, logo consagrado ao
ministério.
Muitas palavras bonitas,
muitas lágrimas, gente de toda classe social acotovelava-se junto à família, aos
pés do defunto. Nisto chega o pastor da igreja. Sempre com pressa, sempre
correndo, abraçou a viúva e os filhos e foi solicitando a atenção de
todos.
Um parêntese necessário: o
pastor tolerava o velho obreiro, mas não nutria por ele qualquer gratidão.
Pastor jovem, inexperiente, ávido de sucesso, sentia que o velho ancião lhe
fazia muita sombra. Enfurecia-se quando ouvia comparações por parte dos membros:
"no tempo do pastor fulano..", "o pastor fulano não fazia assim", "que saudade
do pastor fulano..." Ele se incomodava tanto com isso que tratou de tirar da
igreja todo e qualquer sinal do ministério anterior: reformou o templo, as
salas, tirou a placa, colocou outra e até trocou o nome da igreja, seguindo a
moda ridícula dessas igrejas modernas: "igreja batista luz no meio das trevas".
(se há luz não há trevas; talvez as trevas estivessem na cabeça do obreiro sem
noção...). Suportava um salário vitalício de gratidão que a igreja votara em
caráter irrevogável, tanto a ele quanto à viúva, se viúva ficasse. Cuidados
pastorais? Nenhum! Sequer telefonava para o pastor. Era obrigado a ceder-lhe o
púlpito duas ou três vezes por ano, por força de alguns velhos da diretoria;
cortesia que evitava brigas.
"Meus irmãos, agradecidos
somos pela presença de todos nessa hora tão especial, quando homenageamos o
nosso amado, querido e inesquecível Pastor Asdrúbal Santos. Que falta ele nos
faz! Sou-lhe profundamente grato por tantos momentos especiais que passamos
juntos, eu e minha família. Estou emocionadíssimo e vou sentir falta
dele".
O povo chorava, se
derretia.
"Já mandei para O Jornal
Batista o seu necrológio, em nome de nossa igreja, para que nunca, jamais nos
esqueçamos de quem tanto bem nos fez! Cantemos o hino EU AVISTO UMA TERRA
FELIZ".
Os filhos mordiam a língua,
de bravos e indignados. Tiveram que sair da igreja por força de tantas coisas
que viam, feitas unicamente para destruir o que o pai havia feito. A viúva,
pobrezinha, só tinha sentimentos pela profunda ausência que o esposo lhe
causava. Chorava, dizia palavras de amor bem baixinho, acariciava o seu rosto.
Foi quando, subitamente, lembrou-se da cartinha que mantinha em sua bolsa. Seu
esposo lhe entregara quando sentia que a partida estava próxima. Recomendou-lhe
categoricamente que não lesse, mas que entregasse ao pastor na hora do culto.
Ela, afoita, foi pegar a carta. Acabou derrubando tudo da bolsa (bolsas
femininas são verdadeiras estantes multi-uso; 3 pessoas tiveram que ajudar a
recolher os inúmeros objetos caídos). Achada a carta, entregou-a ao pastor,
recomendando sua pública leitura.
O pastor, terminado o hino,
após enxugar as lágrimas, entregou a carta para que a secretária lesse. O povo
todo aguardou a leitura.
E assim a secretária leu o
texto com emoção e, sem dúvidas, com perplexidade.
"AMIGOS, SE ESTIVEREM
OUVINDO ESTA LEITURA, É PORQUE EU NÃO ESTOU MAIS ENTRE VOCÊS. EU MORRI. ESTOU
COM O MEU SENHOR JESUS, QUE ME SALVOU, REMIU E LEVOU. VOCÊS ESTÃO DIANTE DO MEU
CORPO, QUE DORMIRÁ ATÉ QUE O SENHOR JESUS RETORNE COMIGO E COM TODOS OS SALVOS.
ENTÃO RESSUSCITAREI. OH, ALELUIA!
ALGUNS DE VOCÊS ERAM MEUS
AMIGOS. DESTACO A MINHA AMADA ESPOSA, PARA QUEM VIVI DURANTE TODOS ESSES ANOS DE
FELIZ MATRIMÔNIO. TAMBÉM O JOSÉ, O SIMÃO, O PEDRO E O TIAGO, MEUS FILHOS AMADOS,
AMIGOS DO CORAÇÃO, A QUEM TIVE A HONRA DE EVANGELIZAR, BATIZAR, CASAR E VER SUA
PROLE TÃO BONITA E EDUCADA.
AGRADEÇO AOS MEMBROS DE
NOSSA IGREJA, QUE FORAM MINHAS OVELHAS DURANTE O MEU MINISTÉRIO. VOCÊS SÃO
PRECIOSOS PARA MIM. AGRADEÇO AOS AMIGOS, AOS IRMÃOS DE OUTRAS IGREJAS, AOS
VIZINHOS, AOS QUE COMIGO MANTINHAM PRECIOSA AMIZADE. OBRIGADO!
OBRIGADO!
MAS ALGUNS QUE ESTÃO AQUI
NEM DEVERIAM TER VINDO, ALIÁS, GOSTARIA INCLUSIVE QUE FOSSEM
EMBORA
Nisto todos levantaram o
rosto perplexos, inclusive o pastor celebrante. Mas a secretária
continuou.
HÁ ALGUNS AQUI QUE NÃO ME
DERAM UM INSTANTE DE ATENÇÃO DEPOIS QUE EU ENVELHECI, PESSOAS QUE NÃO FIZERAM
CASO DE MIM. GOSTAVAM DE MIM ENQUANTO PASTOR E ENQUANTO NA ATIVA; TRATARAM-ME
COMO UM SAPATO VELHO, ESQUECENDO-SE QUE EU AINDA EXISTIA. AMIGOS, OBRIGADO POR
VIREM, MAS ISSO NÃO REMEDIARÁ O DESPREZO QUE ME DERAM. PORTANTO, QUERO QUE
SAIBAM QUE A MAIOR HOMENAGEM QUE PODERIAM TER DADO A MIM ERA EM VIDA, NÃO AGORA
QUE MORRI.
TAMBÉM QUERO DIZER ALGO A
VOCÊ, PASTOR CAMARGO CLEMENTE (o pastor da igreja). QUERO AGRADECER POR VOCÊ TER
DADO PROSSEGUIMENTO AO MEU MINISTÉRIO, PASTOREADO AS OVELHAS QUE PASTOREEI E
MANTIDO FIRME A BANDEIRA DA FÉ.
Nisso o pastor aliviou-se,
dando um sorriso de protocolo. Mas por pouco tempo, pois a frase não havia
terminado.
ALIÁS, PASTOR, EU AGRADEÇO
POR TER VINDO AO MEU VELÓRIO, SUA ÚNICA VISITA PARA MIM NOS ÚLTIMOS 4 ANOS. O
IRMÃO SENTIA TANTO CIÚME DE MIM QUE BUSCAVA OPORTUNIDADES PARA FUGIR DE
CUMPRIMENTAR-ME OU DE RECONHECER-ME NO MEIO DA IGREJA. LAMENTO MUITO POR SEU
COMPORTAMENTO. EU JAMAIS DESEJARIA FAZER SOMBRA PARA O SEU TRABALHO. SE ALGUMA
SOMBRA HOUVE FOI DE SUA PRÓPRIA INCOMPETÊNCIA E DESAMOR, NÃO DO TRABALHO QUE
EXERCI AO LONGO DOS ANOS. AGORA SINTA-SE À VONTADE PARA BANIR A MINHA MEMÓRIA
DOS ANAIS DA IGREJA. EU JÁ NÃO SOU MAIS MEMBRO DA CONGREGAÇÃO QUE FUNDEI; ESTOU
NA IGREJA TRIUNFANTE E O MEU SENHOR JÁ TEM TUDO ANOTADO NOS LIVROS DELE. MAS
LEMBRE-SE, PASTOR: UM DIA VOCÊ TAMBÉM FICARÁ VELHO E TERÁ QUE PASSAR PELO QUE
PASSEI. E SENTIRÁ NA PELE TODO O DESPREZO DE UM JOVEM OBREIRO AO SERVO QUE
ENVELHECEU. NÃO FAÇA ISSO COM OUTROS. QUE DEUS LHE AJUDE A
AMADURECER...
nisso o pastor saiu da
cerimônia enfurecido. A leitura continuou.
COMO EU SEI QUE O PASTOR
NÃO SUPORTARIA A VERDADE DITA, JÁ HAVIA INCUMBIDO O MEU IRMÃO DO ENCERRAMENTO DA
CERIMÔNIA. ELE DARÁ SEQUÊNCIA AO CULTO. OBRIGADO, IRMÃOS, PELA PRESENÇA. QUE
DEUS MUITO LHES ABENÇOE. E NÃO SE ESQUEÇAM: PASTORES IDOSOS TAMBÉM SÃO GENTE,
TAMBÉM SÃO RIQUEZAS, TAMBÉM SÃO CARENTES DO AMOR EM VIDA. NÃO SE ESQUEÇAM DE
SEUS VELHINHOS.
E assim foi o seu culto
fúnebre e sepultamento. Até hoje a viúva não recebeu um telefonema do pastor.
Mas não importa: Deus cuidou dela. E em breve ela irá ao encontro de Jesus e
verá na glória o seu amado, remido como ela, no Céu de luz e de
paz.
...........
Isto é apenas uma ficção.
Não conheço qualquer pastor que tenha deixado uma carta assim. Mas o mau trato
que velhos obreiros recebem, ah, esse não é ficção. Seria bom que nos
lembrássemos dos velhos pastores, esquecidos pelas
congregações.
Que tal telefonar para um
deles agora e dizer o quanto são importantes em sua vida?
Wagner Antonio de
Araújo
Nenhum comentário:
Postar um comentário