Série
"Memórias Pastorais"
21 de
abril de 2003
SEMANA SANTA 1:
UM PEDAÇO DE BAMBU
203
Às vezes é preciso voltar no tempo e resgatar aquilo que é
realmente nosso, algo um tanto ontológico. Nessa busca, voltar à terra onde se
nasceu ou onde se criou é muito precioso. Foi o que eu fiz na sexta-feira santa,
dia 18 de abril.
Decidi visitar a roça onde o meu pai nasceu e onde passei
parte de minha infância, entre idas e vindas. Fui para a Meia Légua, lugarejo
distante nove quilômetros da cidade de Cambuí, no sul de Minas Gerais. Convidei
um irmão da igreja e rumei para a roça. Já passava das duas e meia da tarde
(verdadeira loucura!).
Bons momentos esses em que passamos junto aos nossos
amigos!
Fomos pela Fernão Dias, rodovia reformada e abandonada pelo
governo federal, a vergonhosa estrada que liga São Paulo a Belo Horizonte.
Buracos imensos, inúmeros desvios, grande perigo para quem viaja à noite.
Mairiporä, Atibaia, Bragança Paulista, Vargem, cidades que deixávamos para trás,
rumo a Minas. Enfim, entramos no Estado das altaneiras. Montanhas imensas da
Serra da Mantiqueira, chegávamos às cidades da beira do caminho: Santa Rita de
Extrema, Itapeva, Camanducaia. O meu tio José Paulino de Araújo foi dono de
metade do município, mais de 300 alqueires de terra (600 alqueires paulistas),
antigo coronel dominador. Morreu na míngua, com as duas pernas amputadas. Mas,
louvado seja Deus, depois de toda a vida perversa, morreu
crente!
Meu amigo estava ansioso por conhecer a tão-famosa Meia
Légua, de quem eu tanto falava. Enfim, chegamos à estrada da Roseta, primeiro
bairro da região. O sino da capelinha foi o meu pai quem comprou, aliás, comprou
3 vezes, porque roubavam todos! (Trocaram o sino por auto-falantes...) O começo
da estrada foi urbanizado, perdeu a característica rural, mas apenas por 500
metros. Depois disso a estrada volta no tempo. Estradão de chão, pedregulhado,
ao lado de pastos imensos, bicas d'água, plantações de morango, café, vassoura,
lá vai a estrada da Roseta. Enquanto o carro caminha, o meu peito sente uma dor
e uma alegria. Alegria por estar de volta àquele chão que me viu criança.
Tristeza porque as terras que lá tínhamos não nos pertenciam mais (à semelhança
dos outros irmãos, o meu pai colocou tudo a perder e não ficamos nem com um
centímetro dos 22 alqueires mineiros que tínhamos). Mas, "em tudo dai graças", e
aquele ar frio e cheio de verde estava entrando nos meus peitos, me
rejuvenescendo e dando vida.
Mostrei o "morangueiro" ao meu companheiro de viagem, onde a
moçada toda ia trabalhar, saindo às 4 da manhã para pegar no batente e panhar
morangos, nas terras da japonesada da roça. Era madrugada e uns 50 passavam
cantando e conversando, com a boia-fria na mão (no momento estava quente ainda,
mas seria servida fria às 10 e meia), e a esperança de panhar bastante e ganhar
uns cruzeiros a mais.
No alto da serra, a estrada tem duas capelinhas, onde havia
"dança de São Gonçalo". O meu pai era cantador/violeiro. Lembro-me quando fazia
um berreiro no colo da mãe, com dores nas pernas, enquanto o meu pai participava
do grupo de violeiros. As capelinhas, uma em frente à outra, foram fruto da
crendice popular, pois ali dois raios mataram dois caboclos, então fizeram as
igrejas "in memoriam". Daquele ponto para frente seria a Estrada para a Meia
Légua.
Fiz questão de andar bem devagarinho, sorvendo o momento
como um delicioso milk shake. Lá do alto (conforme a foto antiga), dá pra ver
toda a Meia Légua. Paramos antes dos bananais dos Ananias, onde há papagaios,
pelicanos e periquitos em quantidade, soltos e belos. Desaguar era preciso
(...), e admirar a paisagem, indispensável: lá estava a minha terra, precioso
chão onde fui um pouco criado! Algumas casas a mais pipocavam na paisagem, cabos
de eletricidade também se estendiam, mas, no mais, o lugar parara no tempo: era
ainda a minha terra!
Fomos descendo devagar, até que mostrei as três montanhas
inteiras que eram de nossa propriedade, agora todas loteadas em chácaras e
pastos, com casas belas distribuídas. É, realmente a Meia Légua mudou.
Antigamente, sem luz, sem tv, sem benefícios públicos, o mundo era diferente.
Alguns jovens passavam na estrada, e o cumprimento "Diiiia, tinino?", já não
funcionava mais. Acho que "E aí, meu?" seria mais conveniente - fruto da
massificação da televisão. Aliás, casas e casas com antenas parabólicas, pegando
mais canais que a minha tv, que é à cabo!
Chegamos à minha velha casa. Ah, como eu amava essa casa,
construída em 1969 pelo meu pai, casa virgem, primeiros moradores! Lembro-me da
folhinha de 1970 pendurada na sala, os cômodos sem forro, o fogão de lenha e as
panelas de ferro, os pratos de esmalte e as canecas de alumínio! Lembro-me dos
meus sacos de carrinhos de plástico e do "tobogan", onde escorregávamos até a
estrada e depois andávamos uns 300 metros, subida, só pra escorregar de novo!
Eu, meu irmão, meus primos! Lembro-me da cachoeira límpida na descidinha da
casa, onde ficávamos horas brincando, tomando banho e admirando. Lembro-me
quando ali caí! Na época eu não era tão ... gordo como acham que
sou...
Passei em frente à casa de Eva, minha primeira namorada.
Moça cabocla, morena, do cabelo negro, escorrido, sedoso, do corpo talhado à mão
pelo Criador. Ah, eu tinha só 13 anos, era coroinha da igreja de Santo Antonio,
ali do lugarejo. Nesse dia eu estava sentado no banco, o bispo estava presente,
trouxe o seu próprio coroinha. Eva estava sentada ao meu lado. Cantamos "segura
na mão de Deus", e ela gostou tanto da sugestão que resolveu também segurar na
minha mão! Depois todos fomos embora, na estrada escura (era noite sem "luado"),
cada um ia parando ao pé de sua própria porteira. Eva morava um quilômetro antes
que eu. Na porteira ela parou e disse: "Wagui, gosto muito docê. Vem cá mi dá um
bêjo...". E agora? Eu nunca tinha beijado ninguém! Então ela tomou a iniciativa.
Me deu um beijo! Ah, que beijo! 10 segundos? 30 segundos? Não importa! Fiquei
bobo o resto da semana! Ali começamos o nosso namoro. E ali, junto à mesma
porteira, o meu companheiro de viagem teve que me dar licença, mas eu tinha que
chorar...
Caminhamos um pouco mais e vimos o lugar onde estava a casa
do meu saudoso avô, a casa onde o meu pai nasceu. Derrubada. Mas em lugar dela
uma linda casa fora construída, toda bem terminada, com cara de chácara urbana.
Mas a estrada, da casa do meu avô até a casa do meu tio, onde antes figuravam
400 metros de bambuzeiros, ah, esse dava dó: assim que meu pai morreu e o novo
proprietário comprou, transformou tudo em pasto e fez questão de passar o trator
e arrancar cada toco de bambu, até matá-lo definitivamente. Por anos nada nasceu
ali. Mas...
Espere aí! O que é isso? Eu não acredito! É o bambuzeiro!
Sim, por uns 10 metros de estrada, perto da casa de meu finado tio, no lugar
original, sim, lá está o velho e secular bambuzeiro! Ele resistiu! Ele saiu
vivo! Olha o seu renovo! Quanto bambu! Altos, fortes, verdes, bonitos, e cheios
de mudas que sobem a estrada! O ex-proprietário não conseguiu matá-lo! Mesmo o
trator não conseguiu destruir todas as suas raízes! Mesmo o tempo não pôde
fazê-lo esquecido! Ele resistiu! Ele sobreviveu! Ele ficou vivo! Quem diria,
depois de 10 anos! Sim, que maravilha!
E ali, no pé do bambuzeiro, Deus falou comigo. Aleluia!
Parei o carro e apanhei uma varinha, cheia de rama, e coloquei-a no carro. O meu
amigo perguntou para que serviria, e eu disse que seria o tema da mensagem do
domingo à noite, cujo título seria: O RESISTENTE, O PERSISTENTE, O VENCEDOR. E,
de fato, pela graça de Deus, foi sobre isso que preguei, com a vara na mão,
anunciando que, não importa quantos tratores passem pela nossa vida, tentanto
tirar até as raízes de nossa existência, desarraigando os nossos sonhos,
fazendo-nos desistir de nossos alvos e objetivos, não importa quantas sejam as
dificuldades, quantas sejam as perdas, Deus continua sendo Deus e é plenamente
capaz de fazer um renovo em nós, fazendo-nos brotar de galhos secos perdidos,
operando um tentáculo de raiz esquecido, mesmo que passem muitos anos! Deus é
capaz! O bambuzeiro acreditou que ainda seria real e sairia da terra, e, em dez
anos, ele voltou! Nós também, com a graça do Senhor, mas com o desejo de
resistir, poderemos ver a ressurreição de nós mesmos em nossa própria
história!
Confesso que fiquei perplexo com a mensagem do Senhor para
mim. Era para mim que o Senhor falava. A Boas Novas, sofrida e pequenina igreja,
tão miseravelmente perseguida, com tratores e rolos compressores tentando
destruí-la e desarraigá-la, enquadrava-se ali, no papel do bambu, como alguém
que resistiria e venceria! E a minha vida pessoal, sentimental, mais uma vez
dilacerada e arrebentada, ainda seria ressuscitada e abençoada.
Seja Deus engrandecido por cada mensagem que nos dá, ainda
que seja a mensagem de um bambu! Que aprendamos a ouvir a voz de Deus! Obrigado,
Senhor, por falares comigo!
Pr. Wagner Antonio de Araújo
Igreja Batista Boas Novas de Osasco,
SP
Nenhum comentário:
Postar um comentário