sexta-feira, 4 de agosto de 2017

memórias literárias - 490 - QUASE UM BILHÃO

QUASE
UM BILHÃO

 

 
490
 
Não importa o nome do jogador de futebol, nem o time que abandonou, nem o clube que comprou o seu passe. Os jornais mostram nestes dias o quanto ele ganhou em sua carreira (mais de meio bilhão) e o quanto ele custou para mudar de time (quase um bilhão).
 
 
A questão não é se é lícito. Os homens criam as licitudes de acordo com as suas conveniências. O problema é: isto é decente? Isto é moral? Isto é justo? Isto tem justificativa?
 
O time que o comprou diz: "Ele renderá mais do que nós gastamos com a sua compra". Sim, o jogador é apenas um investimento de alta rentabilidade. Certamente que deve haver cláusulas quanto à sua mortalidade, pois já pensou se ele sofrer um infarto ou um derrame cerebral? O jogador não passa de um produto para o lucro e ninguém quer ter prejuízo.
 
Agora, sob o ponto de vista da decência, seria isso algo construtivo? Certamente que o grupo dos oportunistas, dos que não estudam ou dos pais espertinhos estão celebrando, dizendo aos seus jovens futuros jogadores: "filho, concentre-se em ser um jogador; esqueça os estudos, esqueça a decência, derrube quem puder; mas chegue lá, pois quero ver você rico e eu também".
 
Com relação à moralidade, não há nem o que dizer. Enquanto a maioria dos brasileiros vive uma subjugação infeliz tão ruim quanto uma escravidão (O Egito cobrou 20% dos escravos no tempo de José, e o Brasil leva quase 50% dos brasileiros...), e recebem um salário tão mísero que não consegue manter uma boca bem alimentada, um jogador, bom ou ruim, mas que aproveitou as oportunidades, galga degraus inimagináveis à quase totalidade da população brasileira. Aquele colega que resolveu estudar, dando asas ao desejo de se tornar um profissional, que ansiava por ser um médico, com esforço hercúleo conseguiu manter-se até a faculdade, entrou num financiamento horroroso para pagar seu curso de medicina, sujeitou-se à residência médica torturante e, depois de oito anos, fez um salário de 4 mil reais. O colega, chutador de bola, ganhou em uma negociação o que este médico não verá nem na quinta geração de seus filhos, caso não chutem bola também.
 
Isso tem justificativa? Para os hedonistas sim. O prazer a qualquer custo! O povo gosta de quem é vencedor, seja em que área for. O povo festeja o sucesso de um chutador de bola. É a lei do blefe: não importa que eu minta; se conseguir vencer, sou o campeão! Então, neste país de oitavo mundo, se eu vencer e ficar rico serei considerado um vencedor. Por isso o Brasil é tão patriota, quando nem o hino nacional sabe cantar: seus heróis são indignos, com raras exceções. Quem são os nossos heróis? Um camelô que ganhou fortuna vendendo bugigangas para os consumidores; uma cantora que copulou diante das câmeras; um ator que fez um filme pelado; um pastor que comprovadamente vendeu a fé para os incautos. Não importa. O povo olhará e dirá: "Ah, se fosse eu no lugar dele faria a mesma coisa. Parabéns para ele!"
 
Talvez a minha indignação tenha algum eco em algum leitor. Mas a grande maioria dos que também sentiram nojo com os valores desta negociação será hipócrita. No primeiro jogo onde aquele time e aquele jogador aparecerem, irão com uma bacia de pipocas à frente do ecrã, da televisão, e farão torcida pelos gols que o feliz chutador de bola fizer e marcar. E que os colegas dele, infinitamente menos valiosos, consigam jogar à altura e procurem sentir o mesmo prazer, se for possível, quando seus gols pessoais forem remunerados com um centésimo da quantia do chutador caro...
 
E assim a festa do país estará completa. O povo a comer farinha com água, a usar ônibus de terceira classe sem assentos ou conforto, trens e metrôs que mais parecem latas de sardinha, pagarão os seus carnês e  quitarão as dívidas no cartão de crédito rotativo e, com alegria, dirão: "Goooolllll!!!". E o time comprador verá os cifrões crescerem em suas contas. De quando em quando o chutador tirará uma pestana de sua fortuna e fará uma escolinha de chutadores, ou um restaurante para distribuir pratos de comida simples. E gerará filhos e filhos, na certeza de que poderá pagar escola e comida para todos eles.
 
Falo do Brasil, ainda que tudo isso tenha ocorrido na Espanha e na França. A civilização é bizarra.
 
E viva a mediocridade deste mundo tenebroso!
 
Wagner Antonio de Araújo,

04/08/2017

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