quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

memórias literárias - 946 - DA BAIXADA PARA O MIRANTE

 DA BAIXADA

PARA O
MIRANTE
 
946
 
José morava na baixada. Estava na beira de um rio fétido e cheio de animais nocivos. Sua casa era constantemente invadida por cobras, ratos, escorpiões e morcegos. Parte do tempo ele trabalhava, parte do tempo tentava livrar-se dos invasores. Era um homem limpo, organizado, mantinha tudo organizado, mas era impróprio viver ali. Alguns vizinhos faziam questão de gritar, xingar, exibir imoralidades, realizar crimes e invocar demônios. Ele fechava as janelas, trancava as portas, mas não tinha paz. Pensava: "o que farei, meu Deus?"
 
Um amigo lhe disse: "Venha morar mais ao alto. Ali é calmo, é tranquilo, é seguro, é sereno. Experimente!" José titubeava. Ele estava tão enraizado no local que era incapaz de avaliar o quanto lhe faria bem mudar de ares. Ele pensava que só havia vida ali embaixo. Ele ignorava o quanto era bom lá no mirante. Então sofria os ataques dos animais predadores, das enchentes do rio, da fúria dos criminosos e da violência moral da vizinhança. Sofria também com a relutância em decidir-se por subir. Ele vacilava.
 
Um dia, sem aguentar mais, disse: "Vou mudar-me". E então, diferentemente das outras vezes, pegou as suas coisas e mudou-se. Construiu uma casinha na mesma região, mas no mirante. Estava bem ao alto, de onde contemplava toda a baixada e também as demais aldeias da região. Contudo, não foi apenas a mudança geográfica que observou. Houve outras muito mais significativas.
 
Ali onde estava não havia mais os predadores da baixada. Os escorpiões, as cobras, os morcegos e os ratos não subiam até lá. Também a vizinhança era escassa na montanha; poucos se interessavam em construir por ali. E os poucos que encontrou eram bons e não representavam risco moral ou social. Eles também fugiram para lá em busca de paz e sossego, segurança e felicidade. Eles também tinham vindo da baixada e agora experimentavam uma nova realidade.  Eles contemplavam as nuvens, os pássaros, as estrelas e toda a beleza do céu azul.
 
José tornou-se feliz. Respirava ar puro e sadio. Assistia quase todos os dias o nascer do sol e acompanhava feliz o entardecer do dia. Cultivava sua lavoura, criava os seus animais e sustentava a sua família. José encontrara, enfim, um recanto feliz no alto da montanha. Os tempos não mudaram; a baixada não tinha acabado; a vizinhança em geral era a mesma. Mas José tinha mudado de vida, pois decidiu subir ao alto e ali viver feliz, longe do tumulto e da sujeira. Hoje era ele quem sugeria aos antigos vizinhos decentes que também buscassem o alto.
 
José me inspira. José é um grande desafio.
 
Nós moramos na baixada como ele também morava. Estamos à beira do rio fétido e podre de uma sociedade decadente. Através do celular e das mídias os ratos invadem a nossa mente, pervertem o nosso lar, destróem os nossos valores e tiram a nossa paz. Passamos parte do dia a construir e outra parte a consertar os estragos que as mídias fazem em nossos corações e mentes. As cobras da mentira, da luxúria, do pecado, da insensatez, das ambições políticas e dos entretenimentos múltiplos nos ferem, nos picam, nos maculam e nos prendem. A sujeira que deixam é terrível: custamos a dormir, a conciliar o sono, a ter paz na alma. As guerras, as desgraças, os entretenimentos e o mundo invadem o nosso imaginário, deixando-nos depressivos e ansiosos, elevando a nossa pressão, alterando o nosso batimento cardíaco, complicando a nossa diabete e ferindo a nossa fé. Nós vivemos na baixada, pensando nas coisas cá de baixo, nas coisas terrenas, lançando raízes neste mundo tenebroso. Aquilo que deveria ser apenas uma ferramenta de comunicação e informação torna-se senhor de nossa mente e de nosso tempo.
 
Se somos cristãos não sentimos paz enquanto sorvemos tudo isso. Nós nos justificamos muitas vezes, quando, escravizados e dependentes, gastamos horas e horas na frente de um ecrã de telemóvel, na tela do celular, na frente de um computador ou diante de um televisor. Queremos estar informados, queremos ver o fim da novela, acompanhar o jogo do futebol, conhecer as notícias e as novas tendências, examinar tudo para reter o que é bom. Ocorre que o que realmente é bom não está aqui, com raríssimas exceções. Nós sabemos o que é bom, mas é quase inalcançável, elevado demais. O tão falado equilíbrio que deveríamos ter fica longe de nossos olhos e ouvidos: tornamo-nos zumbis.
 
Então concluimos, como José, que precisamos subir. Precisamos escalar a montanha da fé, o alto da comunhão com Deus. Precisamos mudar o nosso modo de viver e passar a buscar as coisas do Céu, onde Cristo está assentado à destra de Deus. Precisamos adquirir o hábito de fechar a porta de nosso quarto e dobrar os joelhos diante da Santíssima Trindade. Precisamos abrir a nossa bíblia de papel e sorver a leitura regrada e contínua da Santa Palavra de Deus. Precisamos da solitude com Deus, buscando-O com fé, até que do alto venhamos a ser revestidos de poder. Isso não é algo eventual, mas uma mudança de hábito, uma mudança de endereço. Temos que sair da baixada do mundo perdido, que se decompõe a cada instante, e correr para os braços do Pai, cujo aconchego é o melhor lugar do mundo! Pelas asas da fé podemos alçar o vôo da águia e chegar aos penhascos mais elevados, onde mal algum poderá nos atingir! Subindo pela escada de Cristo poderemos chegar âs mansões celestiais, ainda que apenas num vislumbre. A nossa presente geração não conhece o que é desfrutar da plenitude do Espírito Santo! Como vive à beira da baixada, trocou a comunhão com o eterno pelo barulho de latas vazias, que se batem umas às outras. Gritam, gemem, falam frases desconexas e vivem mergulhadas no pecado. Isso não é altura; isso é ilusão!
 
Lembremo-nos de Moisés: ele subiu ao alto e ali falou com Deus, trazendo no rosto a marca da comunhão! Lembremo-nos de Jonas: no ventre do grande peixe ele subiu ao alto, comungando com Deus, recebendo a nova chance para cumprir o seu ministério! Lembremo-nos de Daniel: no seu quarto de dormir e na cova dos leões ele subiu ao alto, encontrando paz e a solução de seus problemas, completando as revelações que receberia e ouvindo do anjo a frase: "você é conhecido e muito amado no Céu". Aleluia! Lembremo-nos de Jesus Cristo, o nosso Salvador: Ele subiu ao alto para ser tentado e ali venceu a Satanás; subiu de novo e foi transfigurado, exibindo a Sua glória. Subiu novamente e morreu na cruz, atraindo todos a Si, fazendo-se Cordeiro de Deus. E subiu ao Alto, sentando-se à destra do Pai, recebendo o selo da aprovação pelo Espírito Santo que nos enviou. E um dia, oh, glorioso dia, Ele voltará para nos fazer subir mais ao alto ainda, ressuscitando-nos e dando-nos guarida em Seu reino milenar e, depois, na eternidade. Aleluia!
 
Quer ser vizinho do José? Ainda tem lotes vazios na montanha da comunhão com Deus! Venha!
 
Wagner Antonio de Araújo

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